Sob o pretexto de defender a liberdade de imprensa no continente americano, a 68ª Assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) reuniu em São Paulo, no início desta semana, a mais alta cúpula da grande imprensa das Américas, pessoas que nada ou muito pouco tem a ver com a defesa da liberdade e da democracia.
Escolhendo como alvo de suas críticas os governos da Venezuela e da Argentina, aos quais acusa de tentar controlar os meios de comunicação e de restringir a liberdade de expressão com leis de controle de conteúdo e “manipulação da publicidade oficial”, a SIP deixa claro quais os interesses que pretende salvaguardar.
Cúmplice do golpe midiático desferido contra o presidente Hugo Chávez, em 2002, e crítico contumaz de quaisquer iniciativas de regulamentação e de democratização da mídia empreendidas no continente, o órgão não tem como disfarçar o seu caráter reacionário, alinhado aos interesses de grandes grupos financeiros, cujos representantes sempre estiveram entre os seus dirigentes.
Não é possível esconder sua íntima relação com a mídia conservadora da América Latina, guardiã do neoliberalismo e apoiadora das ditaduras que cobriram o continente de atentados aos direitos humanos.
Refletindo o desejo dos grandes monopólios de mídia do continente de atuar sem qualquer tipo de controle e sem qualquer limite às suas concentrações de meios, a SIP esconde que a existência de marco regulatório é regra na maioria dos países desenvolvidos do mundo.
Ao tentar vincular legislações específicas constituídas em conjunto com a sociedade, como a Ley de Medios argentina, à censura, apenas ratifica que está a favor não do interesse público, mas do das grandes corporações de comunicação, que querem, a qualquer custo, manter seus monopólios de edição e distribuição, sem restrições.
Esquece-se a SIP de mencionar que o Clarín, cujos representantes prestigiaram de bom grado a reunião, recusa-se a cumprir as exigências da nova lei, que limita a concentração de mercado, resistindo às decisões judiciais e passando por cima da agência reguladora do setor.
O grupo, que forma o maior conglomerado de mídia da Argentina, tem sete vezes mais licenças que o estabelecido, controlando 47% do mercado argentino através de suas subsidiárias.
Apenas para constar, a lei de meios argentina foi apontada pelo relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Liberdade de Opinião e de Expressão, Frank La Rue, como modelo, por promover os princípios da diversidade de meios de comunicação e do pluralismo de ideias que, segundo La Rue, são fundamentais para garantir a liberdade de expressão.
Ao divulgar, durante a assembleia, pesquisa indicando que 63% dos diretores de veículos de comunicação da América Latina se sentem pressionados pelos governos, considerando-os as maiores fontes de ameaça à liberdade de imprensa, a SIP pretende subverter a razão e colocar no papel de vilões aqueles que têm assumido o seu papel legítimo e responsável de avançar na democratização dos meios de comunicação.
Novamente tentando demonizar o governo da Venezuela, em relatório apresentado pelo editor do jornal El Regional del Zulia, Gilberto Urdaneta, a SIP afirma que "o que se vive no país em consequência da alta polarização política é atentatório para o livre exercício jornalístico” e que “a intolerância chega a níveis extremos".
No entanto, nada diz sobre a parcialidade com que os jornais privados cobrem os assuntos políticos e a forma como se engajam na mobilização anti-Chávez.
De acordo com levantamento realizado pelo Centro de Análises e Estudos Estratégicos Aluvión, daquele país, citado pelo site Opera Mundi, dados relativos aos cinco principais jornais privados venezuelanos, coletados entre 24 e 30 de setembro (pouco antes das eleições de 7 de outubro) mostram que o número de termos negativos para Chávez foi de 99% do total das referências feitas, enquanto que para o candidato da oposição, Henrique Capriles, ocorreu o inverso: 87% de termos utilizados foram positivos e 13% negativos.
Os participantes da SIP aproveitaram o momento também para fazer a defesa do direito à privacidade, embora apenas da classe artística e não de todos os cidadãos, conforme garante a Constituição.
Porém, não se ativeram a questões como o direito de reposta e de imagem, tão desrespeitados no Brasil, onde são raras as punições com aplicação de multas ou concessões de direitos de resposta, exatamente por não haver uma regulamentação que os assegure.
Também não se pronunciaram sobre grave episódio de violação de privacidade, praticado e confessado, por jornalista da revista Veja, considerada uma das maiores publicações semanais brasileiras.
A assembleia da SIP apenas criou circunstância de deixar patente a sua verdadeira vocação: a de defender os cartéis midiáticos controlados por aqueles que ela representa e reforçar que se julgam “intocáveis”, acima do bem e do mal.
Ou seja, que seguirão rotulando como atentado à liberdade de expressão qualquer tentativa de propiciar maior diversidade e pluralidade no setor de comunicação.
Felizmente, os ventos de mudança sopram na América Latina, com políticas de democratização e regulamentação de mídia levadas a cabo por diversos governos progressistas.
Aqui no Brasil, onde esses ventos tardam a chegar, é preciso avançar nesta questão e deixar claro, de uma vez por todas, que o que temos não é uma imprensa livre, mas sim uma imprensa cujos proprietários dos meios têm liberdade para agir como querem e atingir quem quiserem, alheios ao bem da democracia e ao direito fundamental do cidadão à informação de qualidade.
José Dirceu