Todo mundo sabe como certos desastres terminam
Por: Paulo Moreira Leite
Decano do STF, em 1995 o ministro sustentou, com base no artigo
55 da Constituição, que:
“A norma inscrita no art. 55, § 2o, da Carta Federal, enquanto
preceito de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional
destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição
parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso
Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão emanada de outro poder (o
Poder Judiciário) implique, como conseqüência virtual dela emergente, a
suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato parlamentar.”
“(…) É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só
poderá ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal
transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo voto
secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa.”
“Não se pode perder de perspectiva, na análise da norma inscrita
no art. 55, § 2o, da Constituição Federal, que esse preceito acha-se
vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato parlamentar,
inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro poder na esfera de
atuação institucional do Legislativo.”
Vamos prestar atenção: Celso de Mello está dizendo com todas as
letras que, “salvo deliberação em contrário da própria instituição
parlamentar,” o mandato possui a garantia constitucional da intangibilidade,
impedindo que “uma decisão emanada de outro poder (o Poder Judiciário),
implique a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do
mandato.” Diz ainda o ministro que o mandato só pode ser cassado “por
efeito exclusivo” de uma deliberação “tomada pelo voto secreto e pela maioria
absoluta dos membros de sua própria Casa Legislativa.”
Precisa mais?
Precisa. Em outra passagem daquele voto, Celso Mello faz questão
de estabelecer diferenças entre a Carta em vigor, a de 1988, e a Emenda
Constitucional anterior, de 1969, que procurava formatar as leis da
ditadura nascida com o AI-5. Era um cuidado importante. A carta da ditadura,
que autorizava o funcionamento de um Congresso controlado, onde o presidente da
República divulgava lista de cassados sem o menor pudor, dizia em seu
artigo 149 que o “Presidente” e o “Poder Judiciário” poderiam cassar mandatos.
Os próprios parlamentares estavam excluídos dessa decisão.
Compreende-se. Mesmo num regime sem liberdade partidária, e imensa repressão
sobre as organizações populares, em especial dos trabalhadores, eles poderiam
causar dores de cabeça.
Neste aspecto, a ditadura era coerente. Subtraia dos
representantes do povo – mesmo eleitos naquelas circunstâncias difíceis de um
regime militar – o direito de deliberar sobre a cassação de um mandato.
Examinando as duas cartas, Celso de Mello conclui que uma decisão de
outro poder – fala explicitamente do Poder Judiciário – poderia representar uma
“tutela” ao “exercício do mandato parlamentar” e que a finalidade do artigo 55
era inviabilizar “qualquer ensaio de ingerência” sobre o Legislativo.
Precisa mais?
Precisa. O voto de Celso Mello em 1995 está longe de ser um caso
isolado. Até muito recentemente, era um ponto pacífico para vários ministros da
casa. Vários votaram no mensalão – para sustentar que o Supremo tem o direito
de cassar mandatos.
Em 2011, no julgamento de um deputado condenado pelo STF por
esterilização ilegal de mulheres no interior do Pará, os ministros também
votaram sobre a cassação de mandatos. Alguns votos são significativos, conforme
levantamento feito pelo repórter ErichDecat, divulgado dias atrás por Fernando
Rodrigues:
Luiz Fux, revisor – página 173 do acórdão: “Com o trânsito em
julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados e oficie-se a Câmara dos
Deputados para os fins do art. 55, § 2º, da Constituição Federal.
Marco Aurélio – página 177 do acórdão: “Também, Presidente,
ainda no âmbito da eventualidade, penso que não cabe ao Supremo a iniciativa
visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a deliberar quanto à
perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do § 2º, da Constituição
Federal. Por quê? Porque, se formos a esse dispositivo, veremos que o
Supremo não tem a iniciativa para chegar-se à perda de mandato por deliberação
da Câmara”.
Gilmar Mendes – página 241 do acórdão: “No que diz respeito
à questão suscitada pelo Ministro Ayres Britto, fico com a posição do Relator,
que faz a comunicação para que a Câmara aplique tal como seja de seu
entendimento
Ayres Britto (já aposentado) – página 226 do acórdão:
“Só que a Constituição atual não habilita o Judiciário a decretar a perda,
nunca, dos direitos políticos, só a suspensão”.
Cezar Peluso (já aposentado) – página 243 do acórdão: “A
mera condenação criminal em si não implica, ainda durante a pendência dos seus
efeitos, perda automática do mandato. Por que que não implica? Porque se
implicasse, o disposto no artigo 55, VI, c/c § 2º, seria norma inócua ou
destituída de qualquer senso; não restaria matéria sobre a qual o Congresso
pudesse decidir. Se fosse sempre consequência automática de condenação
criminal, em entendimento diverso do artigo 15, III, o Congresso não teria nada
por deliberar, e essa norma perderia qualquer sentido”.
Vamos ler de novo?
Fux não manda cassar. Pelo contrário: manda oficiar a mesa para
“os fins do artigo 55”, que exige deliberação por voto secreto e maioria
absoluta – da cassação. Para Marco Aurélio, “não cabe ao Supremo a iniciativa
visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a deliberar quanto à
perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do § 2º, da Constituição Federal.”
Gilmar Mendes pede que se comunique a decisão à Câmara para que a “aplique tal
como seja de seu entendimento.”
Claro que ninguém está impedido de mudar de opinião ao longo da
vida. Muitas vezes, essa mudança é indispensável e positiva. Quem pode julgar?
O voto de Celso de Mello em 1995 está longe de ser uma analise
conjuntural. Aponta para traços permanentes que distinguem a Constituição
cidadã de 1988, sem “ingerência de outro poder”, daquela de 1969, que previa
cassação de mandatos pelo poder judiciário, como o Supremo fez com Chico Pinto
em 1976.
Parece óbvio que ele – e outros colegas do STF – mudaram de
opinião com o passar do tempo. Ao julgar o mensalão do PT, concluíram que o
artigo 55 está errado.
Passaram a ter receio de que os parlamentares não cassem o
mandato dos deputados condenados à pena de prisão.
Concordo que pode ser absurdo, mas está na lei e é um direito
deles. E se os parlamentares concluírem, após ampla defesa, que o mandato não
deve ser cassado? É feio? Escandaloso? Imoral?
Repito: feio, escandaloso e imoral é romper a Constituição,
desastre que todos sabem como começam e, para evitar reações em contrário,
fingem não saber como terminam. (Todos sabem como terminam, não é?)
Em 2012, pelo menos quatro ministros do STF dizem que essa
prerrogativa está errada. Dizem que ela pode criar o inconveniente de ter um
político na cadeia – com o mandato no bolso.
Embora os juízes tenham mudado de opinião, a Constituição
permanece a mesma. Passou por várias reformas, recebeu emendas, mas o artigo 55
permanece lá, em seu formato original. O texto é o mesmo, com todos os seus
parágrafos e vírgulas. Temos então, um debate político — e não jurídico. A
discussão é de outra natureza.
Quem quer mudar a Lei Maior, só precisa respeitar o artigo
primeiro, que diz que todo poder emana do povo e será exercido por seus
representantes eleitos – e aprovar uma emenda constitucional.
Não vale dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo diz que
ela é.
Sabe por que? Isso pode ser válido nos Estados Unidos, país que
criou uma democracia aristocrática, com voto indireto, sem uma Assembléia
Constituinte, colocando acertos de cúpula acima da manifestação popular.
Não custa lembrar que George W. Bush foi empossado por decisão da Suprema
Corte.
No caso do Brasil, essa visão ignora a história do país. Os
brasileiros conquistaram sua soberania no fim da ditadura ao eleger uma
Constituinte pelo voto direto e secreto, rejeitando emendões, remendos e
monstrengos variados que se queria impor a partir do alto. A Constituinte foi a
resposta democrática contra as tentativas de fazer uma recauchutagem na
ditadura.
Traumatizados por mandatos cassados conforme as conveniências
dos generais, os constituintes fizeram questão de reforçar suas prerrogativas.
Todo mundo adora Raul Seixas mas ninguém precisa cair no rock da
metamorfose ambulante nessa matéria. E a tal segurança jurídica?
A Carta pode ser modificada, sim. Mas a palavra final está no
artigo primeiro, aquele que diz que todo poder emana do povo, que o exerce
através de seus representantes eleitos.
Esta é a questão.
Por fim, uma observação. É curioso que uma descoberta
relevante sobre um dos ministros mais influentes e respeitados do STF
tenha sido obra de um tuiteiro anônimo. Não foi assim uma revelação
bombástica. O voto estava lá, nos arquivos do STF.
O tuiteiro se apresenta com o pseudônimo de Stanley
Burburinho, e deve ter lá seus motivos para não revelar a identidade.
O Brasil do início dos séculos XVII e XIX possuía vários
personagens dessa natureza, que se escondiam atrás de nomes falsos e apelidos
estranhos. O mais conhecido era um padre do Recife, chamado de O
Carapuceiro, que publicava um panfleto com notícias políticas e
denúncias.
Mas vivíamos sob o absolutismo, da Coroa portuguesa e depois sob
a Constituição promulgada sob a espada de Pedro I. A Censura era vista como um
dado normal da vida pública, assim como o trabalho escravo.
Nada a ver com os tempos da Constituição de 1988, concorda?
Por Paulo Moreira Leite, na coluna Vamos combinar: