Ser de esquerda hoje é lutar contra a modalidade assumida pelo capitalismo no período histórico contemporâneo, é ser antineoliberal, em todas as suas modalidade
Um
instituto que fez a pesquisa e os editorialistas da velha mídia se enroscaram
nos seus resultados, sem entender o seu significado. Afinal, se a maioria dos
brasileiros é de direita – parte que vota na Dilma e parte que vota na oposição
- porque a direita tem perdido sempre e continuará a perder as eleições?
Por que os políticos mais populares do pais são Lula e Dilma e os mais
impopulares FHC e Serra?
Uma primeira interpretação, apressada, é que se trataria de um governo de
direita, daí receber o voto de setores que se dizem de direita. O país viveria
um êxtase direitista, em que governo e oposição não se diferenciariam, ambos de
direita. Tese tão a gosto da ultraesquerda e de setores da direita, ambos
adeptos da tese de que o PT apenas repete o que os tucanos fizeram.
Tese absurda, porque já ninguém pode negar que o Brasil mudou, mudou muito e
mudou para melhor depois dos governos tucanos e nos governos petistas. Como
ninguém nega o destino contraposto que o povo reservou para o Lula e para o
FHC, como consequência das mudanças entre um governo e outro.
Para complementar, a direita tradicional – midiática, partidária, empresarial –
sempre esteve fortemente alinhada com o governo tucano e contra os governos
petistas. Enquanto este sempre teve o apoio dos setores populares, de esquerda,
de dentro e de fora do país – neste espectro, de Cuba a Uruguai, da Venezuela
ao Equador, da Argentina à Bolívia. E, como corolário, a oposição dos EUA e das
forças neoliberais no continente e no mundo. Estes buscando, inocuamente,
projetar o México – o grande modelo neoliberal remanescente – como referencia
alternativa à liderança brasileira no continente.
Afora o bizarro argumento de que todos estão equivocados e que o Brasil de hoje
é igual ao dos anos 1990, de que os lideres esquerdistas não conhecem o país ou
outro desse calibre, uma das características da polarização contemporânea se dá
em torno do traje que veste o capitalismo na época histórica atual.
O anti-capitalismo, que sempre caracterizou a esquerda, ao longo o tempo, foi
assumindo formas distintas, conforme o próprio capitalismo foi se
transformando, de um modelo a outro. A esquerda foi anti-fascista nos anos 1920
e 1930, foi adepta do Esado de bem-estar social e do nacionalismo nas décadas
do segundo pos-guerra, foi democrática nos países de ditadura militar. Assim
como a direita foi mudando sua roupagem, na mesma medida: foi fascista, foi
liberal, foi adepta da Doutrina de Segurança Nacional, conforme as
configurações históricas que teve que enfrentar.
Na era neoliberal, os eixos centrais dos debates e das polarizações se
alteraram significativamente. A direita impôs seu modelo liberal renascido,
marcado pela centralidade do mercado, do livre comercio, da precarização das
relações de trabalho, do capital financeiro como hegemônico, do consumidor. Ao
mesmo tempo da desqualificação das funções reguladores do Estado, das politicas
redistributivas, da politica, dos partidos, dos direitos da cidadania.
É nesse marco que a América Latina passou, de vítima privilegiada do
neoliberalismo, à única região do mundo com governos e políticas
posneoliberais, com governos que se propõem concretamente a superação do
neoliberalismo. A prioridade das políticas sociais ao invés da ênfase central
nos ajustes fiscais. O resgate do Estado como indutor do crescimento econômico
e garantia dos direitos sociais no lugar do Estado mínimo e da centralidade do
mercado. O privilégio dos projetos de integração regional e do intercâmbio
Sul-Sul e não dos Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. Essas
contraposição define os campos da esquerda e da direita realmente existentes na
era neoliberal.
Os brasileiros tem se pronunciado, reiteradamente, a favor das prioridades de
distribuição de renda, do papel ativo do Estado, das políticas de integração
regional e intercâmbio Sul-Sul. Constituiu-se uma nova maioria no país,
progressista, que preferiu Lula ao Serra ao Alckmin, Dilma ao Serra, e se
encaminha para preferir de novo Dilma ao candidato que se apresente pelas
forças conservadoras.
Toda resposta de pesquisa depende da forma como foi formulada a pergunta. E os
institutos de pesquisa tem sido useiros e vezeiros na arte de manipulação da
opinião pública. Basta recordar que o diretor do mais conhecido deles, jurou
que o Lula não elegeria seu sucessor, que o campo estava livre para o retorno
tucano com o Serra, e demorou para se autocriticar, diante da realidade que o desmentia.
Na era neoliberal – modelo imposto sobre um brutal retrocesso na correlação de
forças mundial e nacional – a linha divisória vem desse modelo, dividindo as
forças fundamentais entre neoliberais e antineoliberais – conforme resistam a
governos neoliberais – e posneoliberais, quando se empenham na sua superação.
Em vários períodos históricos houve uma esquerda moderada e uma esquerda
radical. A social democracia passou a representar a primeira, os comunistas e
forças da extrema esquerda, a segunda. No período histórico atual há, na
América Latina, governos posneoiberais moderados – como os do Brasil, da
Argentina, do Uruguai – e radicais – como os da Venezuela, da Bolívia, do
Equador, sem mencionar o de Cuba. Os primeiros romperam com eixos fundamentais
do neoliberalismo – com os enunciados: centralidade do mercado, Estado mínimo,
privilégio do ajuste fiscal e dos TLCs com os EUA – avançam na sua superação –
centralidade das políticas sociais, do papel do Estado, dos processos de
integração regional. Os segundos, além de antineoliberais, se propõem a
ser anticapitalistas, e deram passos nessa direção.
Ser de esquerda hoje é lutar contra a modalidade assumida pelo capitalismo no
período histórico contemporâneo, é ser antineoliberal, em qualquer das suas
modalidades. A moderação ou a radicalidade estão nas formas de articulação, ou
não, entre o antineoliberalismo e o anticapitalismo. Seria demasiado pedir que
pesquisas e editoriais imersos no universo neoliberal como seu habitat natural,
sem a perspectiva histórica que permite entender o neoliberalismo e o
capitalismo como fenômenos históricos precisos e a história como produto de
correlações de forças cambiantes , pudessem captar o sentido de ser de esquerda
e de direita hoje. São vítimas de clichês que eles mesmos criaram e que os
aprisionam.
Enquanto isso, a América Latina, sua direita e suas esquerdas, se enfrentam nas condições concretas e especificas do mundo contemporâneo.
Por: Carta Maior