Quinta-feira, 09 de Outubro, para quem se sensibiliza de verdade com a chaga da corrupção e do patrimonialismo no Brasil, foi um dia indignante. Indignante não em razão das declarações do doleiro – as quais, verdadeiras ou não (já que não apresenta provas), nos apresentam um esquema profundo de malversação de recursos públicos, iniciado ainda no governo Sarney, continuado ao longo dos governos Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma, e tornado público apenas agora. Na verdade, para quem entende a corrupção como um problema que deve vir a público, ser investigado e ter seus responsáveis penalizados, o caso da Petrobrás pode ter sido, então, um bom momento – abstraindo-se, é claro, o enorme oportunismo político contido no momento em que a história vem a público (a primeira semana do segundo turno), inclusive mediante um antiético e ilegal vazamento de informações estrito para a imprensa (o que até prejudica as investigações, mas isso é uma outra história). A vinda dos escândalos a público e a sua devida apuração, isto é, a sua transparência, são fatores fundamentais para proteger, em tese, os bens da sociedade.
A indignação está na outra história, que nos diz muito sobre como os malfeitos foram tratados ao longo de toda a história brasileira: o Aeroporto de Cláudio, MG, construído por Aécio Neves, então Governador do Estado. A obra foi feita em terreno privado, nas terras da própria família, as quais foram depois desapropriadas por uma quantia dezenas de vezes superior ao valor do terreno, e entregues ao tio de Aécio. O aeroporto permaneceu privado, fechado à própria população – a qual sequer tem acesso à infraestrutura básica, como uma maternidade (são obrigados a viajarem para outras cidades para terem seus filhos). O empreendimento está lá, é só ir e visitar, e verificar seu trancamento com cadeados. Os documentos que atestam o escândalo também são públicos, e foram noticiados até pela grande imprensa. No entanto, o processo que tinha sido aberto foi arquivado nessa Quinta, enquanto muitos se impressionavam com a “delação premiada” do caso Petrobras.
O fato de ambos os eventos ocorrerem no mesmo dia é pedagógico para nos ensinar a respeito de como o fenômeno da corrupção é encarado a partir dos dois projetos que, hoje, disputam a Presidência da República. Em ambos, o desvio de recursos públicos ocorre – não importa se mais em um do que no outro, negar ou relativizar a prática não faz sentido. Em um projeto, no entanto, as instituições públicas, criadas ou fortalecidas a partir dele, trabalham o tempo todo para investigar e punir. Paralelamente, os meios de comunicação, que em geral não compactuam com a visão de mundo desse projeto, dedicam-se continuamente a esmiuçar os gastos desse governo, e divulgam com extrema publicidade qualquer suspeita de crime.
No outro projeto, no entanto, há poucos e irrelevantes órgãos públicos voltados para fiscalizar o próprio governo. Por vezes, sequer existem, e por vezes são aparelhados pelo partido dominante. Quase sempre, são organizações frágeis. Para piorar, o Judiciário muitas vezes é conivente. Em algumas situações, até mesmo em razão da falta de consistência da administração, os casos de corrupção se tornam tão grandes que eles chegam até a imprensa. Mas a mídia, que em geral concorda com o projeto de governo em questão, não dá relevância aos escândalos e, a depender do contexto, até mesmo os escamoteiam. Afinal, não querem dar vazão para que o governo apoiado se enfraqueça.
A diferença fundamental entre os projetos, então, está no modo como a corrupção é encarada, e não no fato de ela existir ou não. Em um, ela é investigada, e há plena liberdade para que ocorram julgamentos isentos. Noutro, sequer os casos vêm a público, e quando isso ocorre os meios de comunicação se esforçam, até mesmo, para que não haja repercussão.
Há uma parcela considerável da população brasileira que, justamente, compreende que a corrupção seja senão o maior, pelo menos um dos mais relevantes problemas de nossa República. Para esses, então, o primeiro projeto, em tese, deveria ser visto como aquele com o qual teriam mais afinidade. Esse primeiro ideário, sabemos, é o dos governos que lideraram o país entre 2003 e 2014.
Não há como não perceber o sentido profundamente republicano dessa lógica de atuação, traduzido na criação e fortalecimento de órgãos reconhecidos internacionalmente na prevenção e no combate à corrupção, como a CGU (formada como Ministério como primeiro ato do Governo Lula), e na expansão exponencial de atividades de investigação por órgãos competentes, como a Polícia Federal – que fez 50 vezes mais operações nos governos Lula e Dilma do que na administração anterior. Foi ao longo desses 12 últimos anos que legislações essenciais para a prevenção e o combate à espoliação do orçamento público foram aprovadas: a Lei da Transparência, a Lei de Acesso a Informação, a Lei Anticorrupção, a Lei de Conflito de Interesses, etc.
Há outra parcela, contudo, que confunde, por ingenuidade ou propositadamente, corrupção com petismo, anticorrupção com rejeição a esse partido. Trata-se de um engano, é claro, muito útil para o outro projeto, que pode manter um discurso o mais rígido e intransigente possível contra os desvios, mas nada ou muito pouco fará para combatê-los, ciente que é de que não serão investigados, ou não alcançarão o grande público diante da proteção dos meios de comunicação ao seu ideário. Falamos aqui, por evidente, dos governos que comandaram o Brasil entre 1995 e 2002 – e, sem dúvida, da imensa maioria daqueles que os antecederam.
Infelizmente, contudo, em um contexto de frágil tradição democrática suplementado por uma imprensa que jamais abdicou de sua visão conservadora de poder, cria-se a ilusão de que o primeiro projeto, na verdade, é que permite a corrupção – e que, portanto, deve ser retirado do poder. Aqueles que não são, simplesmente, antipetistas, mas não se alinham a priori ao governo acabam sendo carregados para esse lado.
Para os antipetistas, trata-se de um procedimento útil, pois faz com que sua rejeição ao PT, muitas vezes expressa por meio de preconceitos e visões elitistas de classe seja colocada para debaixo dos panos e, em seu lugar, apareça uma preocupação ética pretensamente profunda com o país – uma ética que não se sustenta tanto pela condescendência com que percebem a corrupção vigente no projeto do PSDB como, principalmente, pela contradição entre a defesa da probidade do espaço público e a proposição de pautas que beiram o fascismo. Não é à toa que no interior desse grupo existem muitos dos “desencantados” com o projeto petista, capazes de realizar o seguinte curto-circuito lógico-argumentativo: 1) o governo do PT roubou; 2) o governo do PT prometeu ser ético, mas me enganou; 3) o governo do PSDB também roubou?; 4) vou votar no PSDB, pois pelo menos ele não me enganou. É a velha Síndrome de Estocolmo, adaptada à luta de classes.
Com relação a esse segmento social, pouco há o que fazer do ponto de vista da promoção de diálogos que causem a reflexão em contexto eleitoral. Afinal, a crítica à corrupção, sempre feita por esse grupo com dois pesos e duas medidas, funciona apenas como um bode expiatório para a
proteção dos interesses de classe – os quais, às vezes, saem do armário mais virulentamente, como agora. Contra o ódio, que é o fundamento da oposição dessas frações contra o projeto do PT, é praticamente inviável construir outro afeto, especialmente a 15 dias das eleições. Com a parcela que percebe o combate à corrupção como uma tarefa efetivamente republicana, mas que não apoia o projeto petista como um todo – estando indecisos ou propensos, sem certeza, a votar em Aécio Neves, em meio ao temporal de denúncias de malfeitos que, neste começo de segundo turno, atingem com força (e apoio midiático) o PT – é fundamental estabelecer o debate. É da disputa desse grupo que saíra o vencedor das eleições.
É hora de a esquerda fazer a comparação de projetos, esclarecendo as diferenças – inclusive e especialmente a respeito do tópico do tratamento governamental à corrupção, no qual Aécio Neves, particularmente, não tem nada a indicar como proposta. É essencial sensibilizar os setores sociais que não se aliam completamente ou às políticas sociais, ou às econômicas em curso, mas que se preocupam com a gestão da coisa pública. É um contingente populacional pequeno, mas não diminuto o bastante para não decidir as eleições. Há muito o que desconstruir e muito o que apresentar como feitos do governo, mas não se deve deixar que a pauta seja dominada pelo outro projeto, que nada tem a apresentar, senão discursos.