A manchete parecia piada: “Juiz do Piauí manda bloquear Whatsapp em todo o Brasil”. A notícia era ilustrada por uma folha da tal ordem assinada pelo juiz Luiz Moura Correia, vazada por um provedor de internet na tarde de quarta-feira (25). Mas ainda poderia ser um boato. Até que a Secretaria de Segurança do Piauí se encarregou de afastar esta possibilidade: “a ordem judicial foi expedida em virtude de anterior descumprimento, por parte do provedor de aplicação de Internet WhatsApp, de outras determinações de caráter.”
A ordem do juiz Moura Correia porém, não durou muito. Um desembargador, também do Piauí, anulou a decisão na tarde desta quinta-feira (27). As companhias de celular e provedores de internet acionados entraram com um recurso, que foi acatado pelo desembargador.
Mas o caso todo é coalhado de coisas no mínimo estranhas. De acordo com a secretaria, uma investigação da polícia civil do Piauí, que busca prender acusados de trocar imagens de pedofilia, não anda desde 2013 porque o Whatsapp desrespeita ordens judiciais.
A solução, na cabeça do juiz, foi ordenar às empresas de telecomunicação que participassem de uma espécie de vendeta contra o Whatsapp, bloqueando o acesso aos servidores do app em todo o Brasil. Algo que não causaria estranheza nos corredores da justiça chinesa ou norte-coreana.
A primeira coisa que fica clara na atitude do juiz Luiz Moura Correia é que sua ordem não visa auxiliar as investigações contra a pedofilia. Tem caráter educativo. Trata-se de uma punição.
A princípio o juiz se calou, mas na manhã de hoje tentou se explicar: “É uma questão de soberania nacional”, disse. Para ele, o Whatsapp desrespeita ordens judiciais “a bel-prazer” e trata nossa Justiça como “terra de ninguém”.
Um argumento perfeito para inflamar o patriotismo em cada um de nós, não é? Mas, vamos lá. A quem interessa cortar o acesso ao aplicativo no país inteiro? Em que pese a falta de reposta do Whatsapp, que culpa temos você e eu nisso tudo? A vingança do magistrado fere mais o cidadão de bem do que os donos do aplicativo. Milhões o usam para trabalhar, falar com familiares. Como ficam?
Tudo pode piorar, e piora: o escarcéu armado por Moura Correa jamais teria dado resultado. Se o magistrado e os agentes da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente de Teresina, responsáveis pela investigação, estudassem o assunto um pouco mais a fundo, teriam poupado a si próprios de tanta exposição negativa.
Em novembro de 2014, o Whatsapp passou a usar criptografia “end-to-end”. Isso o torna virtualmente inescrutável para um agente externo. Quando um novo chat é aberto entre dois ou mais usuários, chaves de criptografia são geradas nos dois aparelhos. Só estes dois as têm. Enquanto estão circulando pela rede, as mensagens eventualmente intereptadas são impossíveis de serem decifradas.
O juiz Luiz Moura Correia |
O fundador do Whatsapp, o ucraniano Jan Koum, disse a respeito desta mudança: “Cresci numa sociedade em que tudo o que você fazia era vigiado, gravado ou denunciado. Ninguém deve ter este direito. Nosso objetivo é proteger a democracia e a liberdade de expressão”.
A criptografia na internet é uma arma do cidadão. É uma conquista do usuário e um inimigo dos governos. Há pouco tempo, Obama se mostrou descontente porque a Apple fez os novos iPhones muito próximos de serem impossíveis de serem investigados. Com a criptografia, Edward Snowden expôs sozinho os crimes da CIA, uma instituição com o orçamento na casa das dezenas de bilhões.
Se os pedófilos não usarem mais o Whatsapp, vão usar a deep web, a grande rede paralela e totalmente criptografada que funciona além do alcance dos motores de busca e do olhar de curiosos. Isso não quer dizer que não possam ser caçados. A polícia do mundo vem aperfeiçoando suas técnicas para conseguir prender estes criminosos.
O trabalho de investigação é que precisa ser aperfeiçoado. Para capturar pedófilos, uma ONG holandesa criou um boneco virtual de uma criança para que investigadores pudessem usá-lo como isca – capturaram 1000 suspeitos.
O segundo ponto foi levantado pelo advogado especializado em direito digital Adriano Mendes no site da revista Exame. Para ele, os dois artigos do Marco Civil da Internet que poderiam amparar esta decisão ainda não estão em vigor. São os artigos 11 e 12, que regulam a atuação de aplicativos de celular no país.
O juiz do Piauí que se tornou celebridade instantânea aparece num momento em que o cidadão já se perguntava se a megalomania dos magistrados poderia ir mais longe. Tivemos o juiz parado na blitz da Lei Seca que ordenou, in loco, a prisão da servidora pública que o acusou de não ser Deus. Temos agora o juiz federal travestido de colecionador de objetos do réu contra quem move processo, de carros importados a pianos de cauda.
Com sua sanção “educacional” que foi solenemente ignorada, Luiz Moura Correia mostra que, além de lenta e corruptível, a Justiça brasileira tem vocações humorísticas. É como na anedota: para curar uma enxaqueca, Moura Correia deve pensar que o melhor é cortar a cabeça fora. DCM