Em meio à passada de boiada do governo Bolsonaro, duas propostas que tramitam no Congresso Nacional abrem caminho para que praias, patrimônio dos brasileiros, tenham donos
O Brasil é o país das praias. Para o brasileiro, é comum desfrutar da infinidade de orlas em 7.491 quilômetros de litoral e uma vida inteira não é suficiente para conhecer cada uma dessas faixas de areia banhadas pelo Oceano Atlântico.
Trata-se de um patrimônio cujo dono é a própria população. Ao menos é o que define a Constituição Federal em seu Artigo 10 da Lei nº 7.661: “As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar”. Essa “liberdade”, no entanto, está ameaçada.
Estão em tramitação no Congresso Nacional duas propostas que, entre seus inúmeros artigos, abrem caminho para privatização das praias. Isto é: muitas delas poderiam passar a ter “donos” e o acesso ficar restrito a “pessoas autorizadas”. São elas, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 39/2011 e o Projeto de Lei (PL) 4444/21.
A PEC 39, de autoria dos deputados federais Arnaldo Jordy (PPS-PA), José Chaves (PTB-PE) e Zoinho (PR-RJ), extingue o instituto de Terrenos de Marinha, que são faixas territoriais, pertencentes à União, de 33 metros ao redor de cursos d’água e do mar. Pela proposta, que já foi aprovada na Câmara em fevereiro e aguarda apreciação do Senado, as propriedades dessas faixas territoriais seriam transferidas para seus ocupantes, que podem ser entes públicos, como prefeituras, e privados.
Apesar de, aparentemente, tratar apenas de transferência de títulos imobiliários, a proposta abre caminho para que municípios possam privatizar essas áreas, construir empreendimentos, restringir acesso, aterrar ou fazer o que bem entenderem, com o adicional de explorarem uma área que já não pertence mais à União e, portanto, escapariam assim da fiscalização e controle, trazendo inúmeros impactos socioambientais e fomentando a especulação imobiliária
Para o deputado federal, que é membro da Frente Parlamentar Ambientalista, a extinção dos Terrenos de Marinha vai na contramão do que outros países do mundo vêm fazendo para enfrentar as mudanças climáticas.
“São patrimônios imobiliários da União, áreas que hoje têm a segurança da legislação de Terrenos de Marinha. E, evidentemente, os Terrenos de Marinha, quando foram criados, foram dentro de uma estratégia de segurança, de proteção do território. Eu diria que hoje tem que ter a mesma preocupação, não no ponto de vista de invasão de outro país, mas no debate que temos que fazer sobre as mudanças climáticas. A ciência já vem provando que o volume do mar tem aumentado, e muitos países, como a França, já vêm debatendo ter faixas litorâneas, como os Terrenos de Marinha, com algum mecanismo de intervenção, controle do poder público, justamente pra tomar medidas de contenção, mitigação, proteção para os efeitos das mudanças climáticas. Isso vai na contramão do que nós precisamos fazer pra enfrentar as mudanças climáticas”, explica o parlamentar em entrevista à Fórum. “É privatização de área pública”, atesta.
PL 4444/21: de fato, a privatização das praias
Já o PL 4444/21, de autoria do deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), é mais direto no sentido privatizar as praias. A proposta teve regime de urgência aprovado em fevereiro e, com isso, será apreciada em plenário sem debate prévio em comissões.
Parlamentares governistas pretendem aprová-la o quanto antes e o relator escolhido pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), é um nome que representa exatamente o oposto da proteção ambiental ou dos interesses coletivos em prol do litoral: José Priante (MDB-PA), membro da famigerada Bancada Ruralista.
A descrição do PL soa até interessante. “Cria o Programa Nacional de Gestão Eficiente do Patrimônio Imobiliário Federal, altera a Lei nº 9.636, de 1998, e dá outras providências”.
Até chegar no artigo 16, que prevê a criação da Zona Especial de Uso Turístico (Zetur) em orlas marítimas, rios e lagoas. Isto é, sob a batuta única do Ministério do Turismo, essas regiões poderiam ser administradas por hotéis, resorts, clubes e megaempreendimentos. O PL diz ainda que esses entes privados que ocuparem as praias poderão impor “restrição de acesso a pessoas não autorizadas”. Ou seja, as praias terão donos.
O PL determina que 10% da faixa de areia de cada município possa ser uma Zetur. Desta maneira, considerando-se os quase 7,5 mil quilômetros de litoral brasileiro, 705 deles poderiam se transformar em praias privadas – extensão que é maior que a de litorais de estados inteiros.
“Esse projeto abre a possibilidade de, a partir de programas tocados pelo Ministério do Turismo, hotéis e resorts possam cercar, digamos assim, definir praias particulares. Um dos riscos é esse, a privatização, usurpação, cercamento de forma particular com determinados empreendimentos de praia”, explica Nilto Tatto.
Impactos socioambientais e culturais
A possível privatização das praias prevista no PL 4444 traz como impacto não só o fato das faixas de litoral passarem a ter donos e, assim, acesso restrito, mas também inúmeros prejuízos ao meio ambiente e também ao aspecto sociocultural de comunidades que vivem nessas regiões.
“Ocupar as faixas de areia para fins de uso privado e turístico é uma ameaça, pois pode comprometer o complexo e delicado ecossistema costeiro. Diversos estudos alertam para o processo de erosão costeira que nossas praias vêm sofrendo, o que deverá se agravar com as previsões recentes de aumento do nível do mar e aumento da frequência de eventos extremos de ressacas do mar”, afirmou Adayse Bossolani, Secretária Executiva do Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional, ao site Conexão Planeta.
À Fórum, Nilto Tatto destaca este impacto como também o que deve ser gerado às populações tradicionais.
“Ao longo da costa brasileira há muitos espaços que historicamente são ocupados por povos tradicionais, estamos falando de indígenas, quilombolas, caiçaras, pescadores. Com isso [a aprovação do PL] a gente vai intensificar o processo de matar esses espaços que são fundamentais pra manter viva tanto a biodiversidade, porque essas populações tem uma relação sustentável com o meio ambiente, como também tudo aquilo que se expressa de cultura. Culinária, festas, toda a produção cultural acaba sendo colocada em risco. É o que acontece quando se tem um empreendimento em algum lugar. Com o tempo você mata não só o meio ambiente, mas essa diversidade, essa riqueza cultural que está expressa nesses lugares”, alerta o petista.
É possível barrar?
Ambos os projetos que podem privatizar praias, a PEC 39 e o PL 4444, são apoiados pelos governistas na no Congresso Nacional, que são maioria. A oposição, portanto, pode tentar travar uma resistência, mas a derrota das propostas depende do apoio da sociedade civil. É o que alerta Nilto Tatto.
“A única possibilidade que a gente tem de segurar para que não avancem esses retrocessos, esse desmonte socioambiental do governo Bolsonaro, considerando que nós somos minoria no Congresso, é quando a gente consegue de forma articulada fazer nossa ação no parlamento com a sociedade, entidades, movimentos que se mobilizam em torno de determinadas pautas. Essa mobilização tem conseguido segurar em especial Senado”, diz o deputado.
“Sem a pressão da sociedade vai passar a boiada e adequar a legislação a esse desmonte que temos assistido no país todo, tocada pelo próprio Executivo”, prossegue.
Tatto afirma que, em última instância, isto é, caso as propostas sejam aprovadas, é possível recorrer ainda ao judiciário. “São dois caminhos pra segurar: ação articulada do parlamento com sociedade civil organizada e no limite, se perder, na via judicial”.