O governo de Jair Bolsonaro é previsível: nunca perde a oportunidade de cometer um ato infame contra as liberdades civis.
A imprensa noticiou que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos formalizou pedidos de investigação contra os médicos que realizaram um aborto, dentro dos parâmetros legais, numa criança de 11 anos, que ficou grávida depois de ser vítima de um estupro em Santa Catarina.
O caso foi revelado em reportagem publicada pelo Intercept em parceria com o Portal Catarinas. Comoveu o país e teve repercussão internacional, com matérias publicadas em vários jornais ao redor do mundo.
E é evidente que este governo apontaria também seus dedos de arminha contra o jornalismo independente. Jair Bolsonaro ameaçou no Twitter e o ministério cumpriu a ordem do chefe. Além dos médicos, a pasta pediu também ao Ministério Público catarinense para “apurar a responsabilidade cível e criminal do site The Intercept por veicular as imagens e o áudio do depoimento especial sigiloso”.
Presidentes autoritários tentam sempre criminalizar a imprensa. O pedido contra o Intercept faz parte de uma estratégia: Bolsonaro avança de maneira metódica e permanente com objetivo de intimidar o jornalismo e degradar ainda mais as instituições e a democracia brasileira.
Os ataques vão desde maus tratos a repórteres – em sua maioria mulheres – durante entrevistas a declarações públicas em que o presidente expressa seu desejo pelo fim de jornais ou sites que publicam reportagens que o desagradam. Somente no Twitter, Bolsonaro e seus filhos atacaram 801 vezes a imprensa desde o começo de 2021. As tentativas de intimidação não se resumem a ataques retóricos: quando era ministro da Justiça, André Mendonça chegou a apelar para a Lei de Segurança Nacional para enquadrar críticos ao governo.
Essa também não é a primeira vez que o presidente e seus ministros atacam a imprensa por publicar informações importantes que eles prefeririam que você não soubesse. Na época da Vaza Jato, Bolsonaro sugeriu que o Intercept havia cometido um crime ao divulgar reportagens baseadas em mensagens privadas. A investigação da Polícia Federal concluiu que não houve crime por parte dos jornalistas.
Nosso trabalho está protegido pela Constituição brasileira, que garante a liberdade de imprensa, de expressão e o direito à informação – assim como o sigilo da fonte, essencial para preservar o jornalismo em denúncias sensíveis.
O aborto é um direito previsto na lei em caso de estupro há 82 anos. Em pleno 2022, uma criança teve esse direito negado por um hospital público, uma promotora e uma juíza, todos agentes públicos, que deveriam pautar seus atos por princípios como o da legalidade. As imagens da audiência, que estão sob sigilo judicial, foram enviadas ao Intercept por uma fonte anônima. Os vídeos são um raro registro da conduta de autoridades nesse tipo de audiência, e por isso foram publicados – com os devidos cuidados para preservar as vítimas.
Os impactos imediatos da nossa reportagem evidenciam o interesse público dessa história. Um dia depois da publicação, uma desembargadora autorizou a criança, que estava em um abrigo, a voltar para casa. As corregedorias do Ministério Público e do Tribunal de Justiça de Santa Catarina abriram investigações para avaliar a conduta da juíza e da promotora. O Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil para investigar a recusa do hospital em realizar o procedimento. A pressão pública decorrente de nossa reportagem fez, enfim, com que a criança tivesse acesso a um direito garantido por lei. Ajudamos a proteger não apenas os direitos dela, mas também os de todas as mulheres que podem passar por essa situação.
Os médicos agiram dentro da lei. Nós, como jornalistas, agimos também dentro da lei, guiados pelos princípios éticos da profissão e respaldados pela Constituição. Não podemos recuar diante da intimidação, porque a lei, o interesse público e você estão do nosso lado.
Não surpreende que o governo de Jair Bolsonaro, acuado pelas denúncias e desesperado pela reeleição, apele para a pauta moral do aborto para tentar reconquistar a sua base conservadora. Nós já explicamos como isso funciona em uma newsletter publicada em junho. Também não surpreende mais essa tentativa de criminalizar o jornalismo. Já passamos por isso – não foi a primeira e não será a última. Essas ameaças são nosso combustível para continuar denunciando abusos de poder e violações de direitos humanos. Enquanto houver Constituição e estado de Direito nesse país, Bolsonaro pode tentar. Mas não vai nos intimidar.