Aeronave de carga venezuelana está bloqueada por sanções dos EUA; relações Caracas-Buenos Aires podem ser impactadas
Avião venezuelano da Emtrasur teve carga inspecionada pelo FBI e tripulação retida 👆 em solo argentino, desde 8 de junho / AFP.
A apreensão de um avião cargueiro que pertence à Venezuela no aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, por determinação da Justiça argentina se converteu no mais recente episódio de bloqueio de bens venezuelanos no exterior por conta das sanções impostas pelos EUA e agora ameaça perturbar as recém-retomadas relações diplomáticas entre os governos de Nicolás Maduro e Alberto Fernández.
O Boeing 747 da Emtrasur, empresa responsável por transportes de carga que pertence à companhia aérea estatal Conviasa, está impedido de deixar a Argentina desde o dia 8 de junho. A Justiça portenha, que não encontrou nenhuma irregularidade na aeronave e na tripulação até o momento, justifica a retenção do avião por conta de um tratado de cooperação judicial com os EUA.
Durante os mais de dois meses em que a aeronave está retida no aeroporto de Ezeiza, o juiz do tribunal de Lomas de Zamora, Federico Villena, tem impedido que a tripulação deixe o país e permitido a realização de inspeções na carga do avião, inclusive de agentes do FBI.
A colaboração dos órgãos judiciais da Argentina com os EUA culminou na apreensão da aeronave a pedido de um tribunal de Columbia, em Washington, no dia 11 de agosto. A corte estadunidense alega que a Conviasa teria "driblado sanções" ao comprar o avião da companhia iraniana Mahan Air, já que ambas as empresas estão sancionadas pelos EUA.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a advogada venezuelana Olga Álvarez afirma que a detenção da aeronave é ilegal, já que ela não infringiu nenhuma lei argentina ou protocolo internacional e está considerada como irregular apenas pelas sanções unilaterais dos EUA.
"A Justiça argentina se submeteu, entregando sua própria soberania, à leis que são extraterritoriais, que não têm efeito fora dos Estados Unidos, e que além disso respondem a interesses perversos já questionados por organismos internacionais vinculados às Nações Unidas, que classificam as medidas coercitivas unilaterais como delitos de lesa humanidade”, diz.
O caso tem estremecido as relações entre Caracas e Buenos Aires, que davam seus primeiros passos rumo à normalização nos últimos meses. O governo venezuelano protesta contra as decisões da justiça argentina e exige a liberação da aeronave e de seus tripulantes. Membros do gabinete de Fernández, por sua vez, têm tentado diminuir as tensões entre os países, afirmando que o episódio não constitui uma crise diplomática.
O embaixador argentino na Venezuela, Oscar Laborde, que assumiu o cargo há menos de um mês, chegou a dizer recentemente que a apreensão da aeronave seria uma operação de "adversários do campo popular" e que teria como objetivo "prejudicar as relações entre Argentina e Venezuela e o crescimento da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos)", atualmente presidida pela Argentina.
Para a coordenadora da Rede em Defesa da Humanidade na Argentina, Paula Klachko, apesar de "posturas interessantes" adotadas por Fernández no âmbito da integração regional, como se opor ao bloqueio dos EUA à Venezuela, o governo argentino não está agindo como deveria para proteger o avião venezuelano.
"A chegada deste governo, que trazia em seu programa a necessidade de reconstruir a integração latino-americana e uma postura soberana frente aos Estados Unidos, foi uma esperança, mas o fato de o país estar fazendo parte do bloqueio que os Estados Unidos dirigem contra a Venezuela nesse caso do avião cai como um balde de água fria em nós", avalia.
Por que o avião está bloqueado na Argentina?
O avião da Emtrasur aterrissou pela primeira vez na Argentina no dia 6 de junho, proveniente do México, trazendo peças de automóveis. O plano inicial da tripulação era abastecer a aeronave e retornar à Venezuela, mas o combustível foi negado em solo argentino. Dois dias depois, o Boeing venezuelano rumou ao Uruguai, onde havia sido prometida a liberação de abastecimento. Durante o voo, entretanto, as autoridades uruguaias decidiram negar a entrada do avião em seu território, forçando a tripulação a retornar à Argentina.
Foi só então que, no dia 8 de junho, os passaportes dos 19 tripulantes foram retidos e a carga foi inspecionada pela primeira vez. Desde então a aeronave não pode deixar o aeroporto de Ezeiza.
As primeiras justificativas da Justiça argentina para reter o avião venezuelano resultaram de alegações levantadas por deputados da direita argentina, pela Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e pela Delegação de Associações Israelitas Argentinas (DAIA). Segundo eles, membros da tripulação teriam ligações com o atentado ao prédio da AMIA que ocorreu em Buenos Aires, em 1994, e deixou 85 pessoas mortas.
As acusações se baseiam no fato de que 5 dos 19 membros da tripulação do avião são iranianos. Historicamente, a Argentina, os EUA e Israel acusam o Irã de ter agido em conjunto com o grupo armado libanês Hezbollah na execução do atentado, embora a participação iraniana tenha sido descartada por órgãos de inteligência ao longo das investigações.
Segundo Álvarez, essas alegações feitas pela promotoria e por setores da política argentina constituem uma justificativa falsa para permitir que os Estados Unidos bloqueiem e se apoderem de um bem que pertence ao Estado venezuelano.
"Isso foi um falso pretexto, um falso positivo, uma simulação para justificar a detenção da aeronave alegando supostas atividades terroristas que nunca foram e nunca serão provadas. É uma perseguição, um caso de lawfare, como os que foram cometidos no Brasil e também na Argentina contra adversários políticos, porque esse caso também é de natureza política", afirma a advogada venezuelana.
Após a apreensão da caixa preta do avião, de documentos e dos celulares dos tripulantes, as autoridades argentinas não puderam encontrar nenhuma irregularidade envolvendo a aeronave, sua carga ou sua tripulação, além do fato de não haver nenhum alerta de organismos de controle internacionais como a Interpol.
Além disso, o chefe da Agência Federal de Inteligência argentina (AFI), Agustín Rossi, garantiu, ainda no mês de junho, que os tripulantes iranianos eram instrutores de aviação acompanhando os profissionais venezuelanos durante o voo e que o caso era uma "operação para gerar desgaste no governo" de Fernández. A informação também foi apresentada pela defesa da tripulação dias depois.
Duas semanas após o avião ter pousado no país, as acusações já perdiam força quando, no dia 21 de junho, a promotora responsável pelo caso, Cecilia Incardona, apresentou um novo parecer ao juiz Villena e pediu que o tribunal aprofundasse as investigações, alegando a existência de uma suposta ligação de um dos pilotos iranianos, Gholamreza Ghasemi, com "organizações terroristas". O que a acusação argumentava era que Ghasemi fazia parte do conselho de uma empresa iraniana de aviação de cargas que prestava serviço às Forças Quds, divisão especial da Guarda Revolucionária do Irã, um setor das Forças Armadas iranianas que é considerado por Washington como uma "organização terrorista".
A defesa da tripulação, por sua vez, alega se tratar de um homônimo, ou seja, de duas pessoas com o mesmo nome, e garante que Ghasemi nunca trabalhou para a referida empresa nem prestou serviços ao Exército iraniano.
As novas acusações apresentadas pela promotoria ganharam apoio de diversos parlamentares da direita argentina, associações israelitas e até da embaixada de Israel no país. Um grupo de senadores do partido Republicano dos EUA formado, entre outros parlamentares, pelos ultradireitistas Marco Rubio e Ted Cruz, chegou a enviar uma carta ao Procurador-geral estadunidense, Merrick Garland, pedindo que o Departamento de Justiça se envolvesse no caso e "ajudasse prontamente" a Argentina a investigar o avião venezuelano.
Na metade de julho, quando o avião já estava retido há mais de um mês no país, um tribunal do distrito de Columbia, em Washington, emitiu uma ordem de apreensão contra a aeronave alegando que as empresas venezuelana e iraniana teriam "violado sanções" ao realizarem a negociação da venda do Boeing. A decisão marcou a entrada oficial e pública dos EUA no caso.
O juiz Federico Villena chegou até a ordenar a liberação da carga e a devolução dos passaportes de 12 tripulantes, permitindo que estes deixassem o país, mas a decisão foi contestada pela promotoria, o que travou o processo mais uma vez.
No dia 2 de agosto, o Departamento de Justiça norte-americano reforçou a ordem do tribunal de Columbia e voltou a pedir a apreensão da aeronave baseada na suposta "violação de sanções" por parte da venezuelana Conviasa e da iraniana Mahan Air, requisição que foi aceita pelo juiz Villena no dia 11 deste mês. A decisão foi justificada pela corte argentina por conta de um tratado de cooperação judicial assinado em 1991 entre os EUA e a Argentina.
Segundo a advogada venezuelana Olga Álvarez, a utilização de tal tratado não deveria ter validade jurídica, pois os delitos alegados pelo tribunal estadunidense "não possuem natureza penal, mas sim um caráter político".
"Na ótica dos Estados Unidos, pode até ser que driblar uma de suas sanções unilaterais seja um ato de rebeldia ilegal, mas isso não é um crime nem no direito argentino, nem no direito venezuelano e nem no direito internacional", explicou a advogada.
:: Empresários e políticos de oposição pedem aos EUA fim das sanções contra a Venezuela ::
A decisão do juiz argentino acelerou os protestos de Caracas e provocou manifestações negativas da diplomacia iraniana sobre o caso, que classificam a medida como "um sequestro" e pedem a liberação imediata da aeronave e de sua tripulação.
Sobre o risco do avião ser extraditado aos EUA após a apreensão decidida pelas autoridades da Argentina, Álvarez afirma que seria "uma barbaridade" que só poderá ser evitada pela resolução diplomática e política do caso.
“Esse é um caso de perseguição política que foi judicializado e, portanto, a saída deverá ser diplomática e política. [Uma extradição do avião para os Estados Unidos] pode ocorrer, com consequências diplomáticas. É possível que os Estados Unidos conquistem uma vitória ilegal desse tipo, mas isso trará consequências políticas e diplomáticas caso uma aberração como essa não seja corrigida a tempo", afirma.
Venezuela e Argentina: diplomacia ou bloqueio
Os protestos da Venezuela vieram do governo, de sindicatos e de movimentos populares. Dias antes do juiz argentino aceitar o pedido de apreensão do avião venezuelano, uma marcha foi realizada em Caracas para pedir não só a devolução da aeronave, mas também de outros bens estatais bloqueados no exterior, como a refinaria Citgo e as reservas de ouro no Banco da Inglaterra.
No dia 11 de agosto, o ministro do Transporte, Ramón Velásquez, acompanhado de uma representação da bancada governista na Assembleia Nacional, se reuniu com o embaixador argentino na Venezuela, Oscar Laborde, para entregar um documento assinado por trabalhadores da Conviasa pedindo a liberação do avião e da tripulação.
Velásquez ainda solicitou a Laborde um encontro com seu homólogo argentino, o ministro Alexis Guerrera, para "avaliarmos juntos qual é a situação e buscarmos a melhor alternativa".
O deputado chavista Pedro Carreño também se reuniu com o embaixador argentino e apresentou uma resolução aprovada pelo Parlamento da Venezuela que exige a devolução da aeronave. "Não duvidamos da disposição do governo argentino e acreditamos na palavra do embaixador, ainda que saibamos como opera o imperialismo", disse o parlamentar na ocasião.
Laborde, por sua vez, classificou o encontro como "uma reunião sincera", mas manifestou ao deputado seu descontentamento com declarações de Carreño sobre o presidente Alberto Fernández. "Esse tipo de situação dificulta o fortalecimento das relações bilaterais e o processo de integração que a Pátria Grande necessita", disse Laborde.
O diplomata se referia a um discurso proferido por Carreño no Parlamento venezuelano dias antes, no qual chamava o presidente argentino de "fantoche do imperialismo". "[Queremos] exigir ao governo argentino a devolução do avião, que é venezuelano, e dizer ao presidente Fernández que demonstre se é um fantoche do imperialismo ou se verdadeiramente governa esse país", afirmou o parlamentar.
A apreensão do avião venezuelano na Argentina se tornou o primeiro incidente diplomático entre os dois países desde que Laborde apresentou suas credenciais para assumir como embaixador na Venezuela no dia 25 de julho. O ato serviu para formalizar um processo de normalização de relações entre Caracas e Buenos Aires que haviam sido praticamente rompidas pelo ex-presidente Mauricio Macri durante sua gestão.
Apesar do silêncio por parte do presidente argentino Alberto Fernández, o embaixador do país deu sinais de que o governo peronista não está de acordo com as medidas adotadas pela Justiça. Em uma entrevista à rádio AM750 da Argentina na última terça-feira (16), Laborde afirmou que a tripulação do avião venezuelano está retida "sem que haja nada que lhes possa desabonar" e destacou que o caso pode ser "um operativo do adversário do campo popular".
"Também existe a compreensão de que isso atenta para prejudicar uma relação que se recuperou recentemente entre Argentina e Venezuela e também contra o crescimento da Comunidade de Estados Latino-Americanos [CELAC]. [...] Para nós, é natural pensar que muitos adversários que não querem essa situação exagerem e gritem com o tema do avião", disse o embaixador.
Para a coordenadora da Rede em Defesa da Humanidade na Argentina, Paula Klachko, a apreensão do avião pode ser uma operação para frear a reaproximação entre os dois países, embora o governo de Fernández devesse tomar atitudes mais contundentes sobre o caso.
"Uma parte disso tem a ver com a intenção dos Estados Unidos de romper essas relações que vinham sendo reconstruídas, ainda que tardiamente, mas em um bom momento e de maneira sólida. O problema é que os representantes do governo se queixam dessa situação, mas não atuam. Parecem querer ganhar tempo atrasando a resolução, mas isso já se torna insustentável. A tripulação segue aqui, sequestrada. É uma vergonha internacional", avalia Klachko.
Lucas Estanislau/Brasil de Fato | Caracas (Venezuela)
Edição: Thales Schmidt