O preço do 7 de setembro

Secom transformou bicentenário em propaganda de Bolsonaro.

Eu poderia começar este texto falando da cafonice do projeto gráfico das peças publicitárias, das frases vazias, do mau gosto da tour do coração num pote de vidro. Mas vou abrir com uma cifra: R$ 400 mil. Esse foi o valor gasto só na instalação de peças publicitárias nas empenas dos prédios da Esplanada dos Ministérios em Brasília na comemoração do bicentenário da Independência do Brasil em 2021 e 2022. 

O dado está em um documento publicado pela Secretaria Especial de Comunicação Social, a Secom, em resposta a um pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação. Lá, a Secom explica que "para execução dos serviços de produção, impressão, instalação, manutenção e retirada das empenas foram investidos, nas duas ações, o valor total de R$ 405.430,20 (quatrocentos e cinco mil, quatrocentos e trinta reais e vinte centavos)". 

O valor das empenas faz parte de uma campanha muito maior, que ultrapassou a exaltação à data histórica e virou plano de comunicação do próprio governo Bolsonaro, cheio de autoelogios, em pleno ano eleitoral.

Foi em 2019, primeiro ano de Bolsonaro, que um decreto criou a Comissão Interministerial Brasil 200 Anos, órgão que articularia as ações em torno da Independência. Essa comissão incluiu a Casa Civil, os ministérios da Defesa, Relações Exteriores, Educação, Turismo e de Comunicações, por meio da Secom. Foi essa última a responsável por articular as "narrativas", ações de publicidade e comunicação visual do bicentenário.

O documento da Secom com as diretrizes é um primor. A secretaria determinou duas visões na estratégia de comunicação: a histórica e a atual. "Ou seja, à luz de valores e feitos históricos falaremos de nossa Independência como um todo, desde seus eventos fáticos do século XIX até a reafirmação dessa Independência na atuação do Governo Federal na atualidade", escreveu a secretaria. "Falaremos, portanto, de independência, soberania, liberdade, trabalho, união, alegria, vida, família, Brasil". 

Olhemos, primeiro, para o passado. A comemoração do bicentenário se baseia, principalmente, na visão romântica de Dom Pedro I às margens do Ipiranga, empunhando sua espada para o alto, gritando "independência ou morte". Nenhuma palavra sobre o fato da independência não ter sido decidida por Dom Pedro I – mas, sim, por sua mulher, Leopoldina. Muito menos sobre como o pacto pela independência foi construído pelas elites escravocratas em troca da manutenção do tráfico de pessoas escravizadas – mas, eu sei, seria esperar demais do governo Bolsonaro qualquer reflexão nesse sentido.

Voltemos, então, para o presente. A Secom quer de qualquer maneira nos convencer de que o governo atual está, de alguma forma, voltando às origens daquele grito de liberdade. Afinal, "o trabalho liberta", eles disseram. 

Na última página do documento, a Secom dá "ideias-força de abordagem por tema". É um compêndio de tentativas de vincular o projeto falido de Bolsonaro à ideia de independência, num malabarismo digno de aplausos. Segurança, por exemplo: "combater o crime e endurecer contra a criminalidade é libertar os brasileiros", diz o governo. 

No meio ambiente, a ideia é reafirmar "a nossa liberdade e independência perante o mundo na gestão de nossos recursos naturais". Na agricultura e pecuária, o produtor brasileiro leva a "liberdade de alimentação ao mundo todo". Em relações exteriores, o governo afirma que seus acordos e relações são "conduzidos sob a luz da liberdade para todas as nações, posto que priorizamos relações com países livres e democráticos". Tipo a Arábia Saudita, sabe? E, em educação, a "ideia-força de abordagem" é usar as escolas cívico-militares para mostrar que o governo não quer "outra coisa que não a liberdade de sua população". Aquelas escolas em que há denúncias de ameaças de policiais, assédio contra alunas e censura. Assim, bem livre.

Em outra resposta a um pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação, a Secom detalhou as campanhas "7 de setembro - Semana da Pátria" nos anos de 2020, 2021 e 2022. Ali, a propaganda aberta do governo ficou ainda mais latente. Se em 2020 e 2021 a Secom se manteve fiel à data, relembrando fatos históricos, nesse 2022 a pasta perdeu a vergonha e incluiu na campanha paga com dinheiro público temas como "agronegócio", "eficiência nas estatais", "combate às drogas", "combate à corrupção", "Auxílio Brasil", "defesa da família" e "acesso a autodefesa".

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, chegou a emitir uma decisão proibindo a campanha do bicentenário. Ela afirmava que as peças publicitárias tinham "slogans e dizeres com plena alusão a pretendentes de determinados cargos públicos, com especial ênfase às cores que reconhecidamente trazem consigo símbolo de uma ideologia política, o que é vedado pela Lei eleitoral, em evidente prestígio à paridade de armas”. 

Bolsonaro reagiu. "O grande problema é nossa liberdade que está em jogo. A gente vai acabar perdendo isso aí, se a gente não se preocupar. Essa decisão do verde e amarelo, parece que não é nada, mas é importante", ele criticou.

A lei eleitoral veda uso da máquina pública para promoção do governante na eleição. Mas, horas depois, outra decisão saiu. O TSE afirmou que a primeira havia sido um erro. Na nova, autorizou a campanha sobre o bicentenário, mas pediu que fosse extraída uma parte que considerou ter conotação eleitoral. Proibiu qualquer menção ao governo e exigiu que as peças tenham identificação apenas dos ministérios do Turismo, da Defesa e das Relações Exteriores. 

Em julho, na convenção do PL, Bolsonaro convocou seus seguidores a irem às ruas "pela última vez" no 7 de setembro. A data, como bem mostrou o cientista político Lucas Rezende nesta semana aqui no Intercept, foi usurpada pelos militares, que tomaram para si os méritos da Independência – e se tornaram protagonistas da comemoração, deixando a sociedade civil como mera espectadora. 

Mas neste ano, além do desfile militar, a data também foi usurpada por Bolsonaro – ele mesmo, um representante dos militares – para ser usada como desfile eleitoral e propaganda de seus conceitos tortos de liberdade. "Não é novidade nenhuma que Bolsonaro usará as Forças Armadas (ou elas o usarão) como ferramenta política no 7 de setembro. Só o fato de haver manifestações eleitorais favoráveis ao presidente no mesmo local das comemorações militares já é algo que seria inaceitável em qualquer democracia consolidada", escreveu Rezende. 

Mas, como aceitamos, nos resta assistir, mais uma vez. O histórico da Secom mostra que, desde a gênese, o bicentenário está programado para funcionar como propaganda de Bolsonaro, com estratégias para divulgar políticas de um governo e não do estado, como deveria acontecer em uma República. Será uma demonstração de força e tentativa de intimidação? Ou o último desfile de um bolsonarismo decadente e cambaleante? A única certeza, até agora, é que todos nós ajudamos a financiar a festa governista desta quarta-feira. Das empenas da Esplanada, nós já sabemos o valor. Assista aos desfiles e faça as contas do resto.


Tatiana DiasEditora Sênior
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