Contragolpe | A dignidade grita por um sabonete

Valores invertidos na economia repetem o fracasso brasileiro e seu desastre aparece na súplica de um morador de rua por um item básico de higiene.

No meio de um corre na farmácia, em busca de um remédio difícil de achar, um senhor se interpõe na porta. Negro, magro, está com as roupas mal-alinhadas, não tem os dentes da frente. Deve ter uns 40 ou 50 anos. Parece um morador de rua e cambaleia. Suponho que esteja bêbado. Tenta me abordar. Mas estou afoita para garantir o medicamento que procuro e explico que não posso conversar naquele instante. Ele entra depois de mim, e a atendente e o funcionário que cuida da porta ficam tensos.

Faço o meu pedido no balcão, aguardo preocupada para ver se finalmente encontro o remédio para minha dor e começo a relaxar quando o atendente confirma que ainda tem o medicamento no estoque. Ele preenche meus dados no sistema e me distraio. 

Havia esquecido da presença daquele senhor, mas ele chega ao meu lado enquanto aguardo a compra. Tenta falar com voz muito baixa e em pausas. "Eu não consigo ouvir o que o senhor está falando", digo um pouco contrariada, pois ainda acredito que ele está alcoolizado. Ele se encoraja e pergunta, meio embaraçado, se posso comprar um desodorante para ele. 

Fico desconcertada. Ele só queria um item básico de higiene. Digo que sim, sem graça. Então, ele fala em voz firme, um pouco mais entusiasmado: "Pode ser um sabonete também?".

Só então entendo o porquê de ele balbuciar antes de maneira estranha. Estava com vergonha. Pego o desodorante e o sabonete e vou para o caixa. Ele me segue, encolhido, quiçá temendo que eu não cumpra a minha palavra. Quando a caixa me pergunta: “Ponho as coisas dele numa sacola separada?”, digo que sim. O senhor abre seu sorriso, me estende a mão e a aperta com doçura. 

"Posso só fazer mais um pedido?", me pergunta. Olho ressabiada. "Posso beijar sua bochecha?". Surpresa, estendo o rosto, ele dá um beijo estalado, pega sua sacola e agradece. Agradece de novo. E vai embora. 

Fica um silêncio enorme na farmácia. O homem não queria dinheiro para pinga, como julguei. Só tinha o desejo incontido de cheirar bem, de se lavar, de sentir-se digno. Iria ele tomar banho onde? Meus pensamentos voaram. 

A reflexão sobre o que é exatamente a dignidade no Brasil me atravessa há dias. Faz quase 50 anos que João Bosco escreveu “De frente para o crime” (Está lá o corpo estendido no chão), 63 anos desde que a intelectualidade se deslumbrou com o livro “Quarto de Despejo", de Carolina de Jesus, descrevendo sua vida numa favela. E ainda sangramos com a violência policial, com a miséria escancarada e com a indiferença para lidar com essas chagas. “A fome nos faz tremer [...] é horrível ter só ar dentro do estômago”, descreveu Carolina de Jesus. 

Nosso Banco Central tem metas para inflação e juros, mas não tem metas de ampliação de emprego, para matar a vergonha de quem procura dignidade por meio de um sabonete ou um prato de comida. Sim, a inflação prejudica os pobres e é preciso elevar juros para controlá-la. Mas a falta de um equilíbrio na dose do remédio também mata o paciente. 

Em nosso país de valores invertidos, Marcos do Val, o senador que mentiu sobre o intento de golpe, não tem dignidade. Generais golpistas não têm dignidade. Os “mercadistas”, ansiosos pelo day trade a qualquer custo, idem.

Num tempo em que o ódio fermenta no Brasil, atentar-se que equações matemáticas podem e devem incluir variáveis humanas é imperativo. O hoje ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, denuncia esse capitalismo seletivo brasileiro há algum tempo. O racismo que espreme os salários dos negros. O liberalismo meritocrático que fabrica pirâmides financeiras em balanços das Lojas Americanas. 

Se casas na periferia de São Paulo estão pagando muito mais pela conta de água do que residências no centro expandido da capital, imagine quando o governador Tarcísio de Freitas privatizar a estatal. 

A economia é uma ciência humana e precisa fazer jus a essa definição. Suas métricas precisam diminuir o déficit de vergonha, casar a manutenção da Amazônia, a dignidade dos desabonados, além do lucro das empresas. É essa cultura que deveria ser disseminada na sociedade. É o que as igrejas, católicas e evangélicas, deveriam estar fazendo juntas, em vez de adorar bezerros de ouro.

Fico com o senhor da farmácia. Que sobrevive à escravidão de seus antepassados. Que pede um desodorante e um beijo na bochecha. É por onde uma grande massa, atordoada pelo noticiário meritocrático, quer trafegar e não sabe como.


Carla Jimenez
Colunista




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