Por The Economist
Em 31 de janeiro, Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil, suspendeu o pagamento de uma multa bilionária imposta à Novonor, uma empresa de construção mais conhecida pelo seu antigo nome, Odebrecht. No mês anterior, ele havia suspendido outra multa, aplicada à J&F, dona do maior frigorífico do mundo, a JBS. As empresas concordaram com as multas como parte de acordos de leniência nos quais seus executivos admitiram ter subornado autoridades brasileiras. Toffoli decidiu que havia dúvida razoável quanto à possibilidade de os acordos terem sido assinados voluntariamente e argumentou que o juiz que administrou as multas pode ter conspirado com os promotores.
Decisões do ministro Dias Toffoli 👆, do STF, suspenderam multas aplicadas em acordos da Lava Jato Foto: Wilton Junior/Estadão
As multas ocorreram após uma série de investigações de corrupção no Brasil, das quais a mais famosa, conhecida como Operação Lava Jato, foi iniciada há dez anos neste mês. Fez parte de uma onda de atividades de combate à corrupção que varreu a América Latina na década de 2010. Mas as decisões de Toffoli correspondem a um novo agravamento da percepção da corrupção em toda a região. O Brasil caiu dez posições em um índice anual de corrupção percebida divulgado pela ONG Transparência Internacional em janeiro. O Peru caiu 20 posições, situando-se entre os países considerados os mais corruptos do mundo. A maioria dos países latino-americanos teve resultado inferior ao sugerido por seu nível de desenvolvimento.
Nem sempre se pode confiar nas percepções, mas há outras evidências de uma reação contra os esforços de combate à corrupção. Em novembro, os aliados do novo presidente de Honduras contornaram o Congresso para nomear um procurador-geral amigo do partido no poder. No momento do fechamento da reportagem, o congresso do Peru estava prestes a votar o possível afastamento de membros do órgão independente que seleciona procuradores e juízes, apesar de numerosos legisladores serem atualmente investigados por corrupção.
Toffoli ignorou conflito de interesse ao suspender multa bilionária
O presidente populista do México, Andrés Manuel López Obrador, busca desmantelar o órgão estatal que investiga desvios administrativos. Os políticos no poder na Guatemala lutaram arduamente para impedir que Bernardo Arévalo, um antigo ativista do combate à corrupção, tomasse posse como presidente em janeiro.
As raízes desta reação encontram-se no drama das investigações regionais de combate à corrupção. A polícia brasileira começou a investigar a Petrobras, a empresa estatal do petróleo, em março de 2014. Há anos ela distribuía contratos de construção a preços inflacionados. As empresas usaram o dinheiro extra para subornar executivos e funcionários do petróleo. A investigação foi desmembrada em uma dúzia de outras, com foco em construtoras. Entre 2001 e 2016, a Odebrecht pagou quase US$ 800 milhões em subornos em três continentes, obtendo mais de US$ 3 bilhões em lucros para si e seus comparsas. É o maior caso de corrupção estrangeira já processado pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, cuja jurisdição foi envolvida porque alguns subornos foram canalizados por meio de contas bancárias nos EUA.
Crime e castigo
A investigação foi batizada de Lava Jato porque teve como ponto de partida a apuração de um lava-rápido que fazia lavagem de dinheiro. Tornou-se possivelmente a maior investigação de corrupção desde a operação Mani Pulite (“Mãos Limpas”) da Itália, na década de 1990, e revolucionou a política em toda a América Latina. Quase um terço dos senadores do Brasil e quase metade dos governadores do país foram envolvidos em algum ponto. A presidente de esquerda da época, Dilma Rousseff, sofreu impeachment em 2016. Seu mentor, Luiz Inácio Lula da Silva, que foi presidente entre 2003 e 2010, foi condenado à prisão duas vezes (ele foi libertado após 580 dias). Ambos os casos estavam ligados à Lava Jato ou sob impacto dela.
No Peru, cinco ex-presidentes foram investigados; um cometeu suicídio quando a polícia veio prendê-lo. Ex-presidentes também foram investigados em El Salvador, Panamá, México, Paraguai, Equador e Colômbia. A maioria afirma que as investigações são motivadas politicamente.
A extensa investigação da Lava Jato também abalou as economias latino-americanas. As receitas de várias construtoras implicadas despencaram como consequência dela. Algumas faliram. No Peru, onde contratos de construção no valor de US$ 17 bilhões foram investigados pela Lava Jato, milhares de trabalhadores perderam os seus empregos quando as obras públicas foram paralisadas. Por um tempo, parecia que ninguém conseguiria escapar dos tentáculos investigativos da Lava Jato.
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Então veio a derrocada. Erros e a arrogância de procuradores zelosos lançaram dúvidas quanto à imparcialidade da investigação. O mais proeminente juiz da Lava Jato, Sergio Moro, divulgou um acordo de confissão que implicou Lula uma semana antes das eleições de 2018. O candidato favorito de Lula perdeu para Jair Bolsonaro, um populista de extrema direita cuja campanha foi impulsionada por fake e pelo sentimento anti-establishment gerado pela Lava Jato.
Então, Moro deixou o Judiciário para se tornar ministro da Justiça de Bolsonaro. O principal promotor, Deltan Dallagnol, tornou-se deputado por um partido de direita. Em 2019, mensagens de texto vazadas publicadas pelo site investigativo The Intercept indicaram que Moro estava conspirando com Dallagnol nos casos. Ambos disseram à reportagem que não houve conluio e salientaram que a maioria das decisões judiciais sobre a Lava Jato foi inicialmente mantida diante de recurso. Dallagnol disse que a força-tarefa não reconheceu a autenticidade das mensagens vazadas, e Moro que elas “nunca foram examinadas em tribunal aberto”.
Os críticos também acusaram a força-tarefa da Lava Jato de usar táticas agressivas para atrair a atenção da mídia. Lula foi alvo em 2016 de uma condução coercitiva, geralmente usada quando um intimado se recusa a comparecer a uma audiência, algo que não havia ocorrido. No Peru e no Brasil, os promotores foram criticados pelo uso extensivo da prisão preventiva. Um investigador brasileiro proibiu o reitor de uma universidade de entrar no seu próprio campus e colocou-o brevemente em prisão domiciliar por suspeita de corrupção. O reitor suicidou-se logo depois. Ele era inocente.
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Os políticos exploraram essas rachaduras. “A Lava Jato foi como o momento jacobino da Revolução Francesa”, diz Marco Bastos, da consultoria Southern Pulse. Os brasileiros ficaram boquiabertos diante de seus televisores enquanto um desfile de políticos era figurativamente guilhotinado. Então veio o contra-ataque da velha guarda.
Uma luz que se apaga
É possível que os legisladores tenham deposto Dilma Rousseff porque sentiram que ela estava fazendo muito pouco para protegê-los. O senador Romero Jucá foi flagrado por um grampo telefônico antes do impeachment dela dizendo a um aliado político: “Tem que resolver essa p... Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria.”. Ele disse que suas palavras foram tiradas do contexto.
Em 2017, o sucessor de Dilma Rousseff, Michel Temer, que chegou a ser preso preventivamente por algumas horas por corrupção e repetidamente rejeitou as acusações como mentiras, perdoou infratores não violentos presos por corrupção que cumpriram um quinto da pena. Seu decreto afirmava que isso poderia conter o “crescimento exponencial da população carcerária”. Em 2019, o Supremo Tribunal reverteu uma decisão anterior e decidiu que os réus poderiam esgotar todas as instâncias de recurso antes de serem presos. Isso libertou Lula e protegeu muitos políticos da prisão. No mesmo ano, o Congresso aprovou uma lei que criminaliza “abusos” cometidos por procuradores e juízes, com uma definição ampla de abuso.
O sucessor de Temer, Bolsonaro, teve as suas próprias razões para romper com a Lava Jato, apesar de ter aproveitado a onda de sentimento que esta criou para chegar ao poder. Ele nomeou um procurador-geral que engavetou mais de 100 pedidos para investigá-lo. Em 2020, quando começaram a investigar um de seus filhos, que também é político, Bolsonaro foi rápido em declarar que “não há mais corrupção no governo” (o filho nega qualquer irregularidade e chama as investigações de “perseguição política”). Ele dissolveu a força-tarefa da Lava Jato em 2021. Os cruzados anticorrupção da América Central tiveram um destino semelhante. Os tribunais apoiados internacionalmente em Honduras e Guatemala foram ambos encerrados por políticos.
As recentes decisões de Toffoli mostram que a reação aos esforços de combate à corrupção continua. O próprio juiz já foi ligado à Lava Jato. Em 2019, o veículo brasileiro investigativo Crusoé publicou um artigo a respeito de e-mails enviados pelo chefe da Odebrecht em 2007, que se referia a Toffoli, então procurador-geral, como “o amigo do amigo do meu pai”. A matéria alegava que “amigo do meu pai” era uma referência a Lula, que era presidente na época. Ele nomeou Toffoli para o Supremo Tribunal em 2009. Depois que a história foi publicada, o Supremo Tribunal considerou o artigo “fake news” e ordenou que fosse apagado da internet. Apenas o clamor público forçou a reversão da decisão. Além de suspender as multas a serem pagas pela Odebrecht e pela J&F, Toffoli também anulou todas as provas reunidas no acordo de leniência da Odebrecht. Ele se recusou a comentar o caso com a reportagem.
Poucos no Brasil ainda querem falar de corrupção, exceto para expressar seu desdém pela Lava Jato. Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal, considera-a produto da interferência estrangeira, da “propaganda” dos meios de comunicação e de “combatentes anticorrupção [que] gostam muito de dinheiro”.
De ambos os lados
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A reação negativa à Lava Jato é bipartidária. Moro, agora senador, enfrenta dois julgamentos que podem impedi-lo de exercer o mandato. Um relativo a supostas irregularidades no financiamento de campanha, foi apresentado pelo partido de Bolsonaro. O outro, que alega que Moro cometeu fraude como parte de um antigo acordo judicial, foi aberto por Toffoli. Dallagnol perdeu seu assento no Congresso após uma decisão de um tribunal eleitoral por causa de um detalhe técnico. Ele observa que o próprio juiz da decisão foi investigado pela Lava Jato e que os tribunais inferiores decidiram em seu favor. Moro diz que ambas as acusações contra ele são infundadas.
Em 26 de fevereiro, outro ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil autorizou empresas que assinaram acordos de leniência durante a Lava Jato a renegociar os termos. Eles tiveram 60 dias para fazê-lo, período durante o qual todas as multas relacionadas ao caso foram suspensas. As empresas alegaram que se sentiram coagidas a assinar os acordos, que “colocam em risco sua existência”.
A ruína da Lava Jato repercutiu em toda a América Latina. No Peru, ex-funcionários apontam para a anulação das provas da Odebrecht como parte dos seus esforços para que seus casos sejam arquivados.
O Antigo Regime tem reagido, e está vencendo. Mas é necessário cuidado. Em uma pesquisa nacional divulgada em 3 de março, uma pluralidade de brasileiros disse que a Lava Jato foi encerrada por causa de interesses políticos. Um total de 74% dos indagados acreditam que as recentes decisões do Supremo Tribunal “incentivam a corrupção”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
Título original: Corruption is surging across Latin America >> 🔗 The Economist