A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) é falha, especialmente por ter tipos penais muito abertos. Mas não deixa de ser um avanço em relação à Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983), editada ainda durante a ditadura militar. E essa norma de 2021 foi a ferramenta que viabilizou a contenção à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, na avaliação dos advogados criminalistas Nilo Batista e Rafael Borges, autores do livro Crimes contra o Estado Democrático de Direito (Revan).
A obra é dividida em duas partes. A primeira conta a história da legislação brasileira de segurança nacional. Muitas das análises sobre as normas, especialmente aquelas editadas durante a ditadura, foram escritas por Nilo Batista à época em que elas entraram em vigor. Já a segunda seção traz comentários sobre a Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Para Batista e Borges, o ex-presidente Jair Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado (previstos nos artigos 359-L e M da lei), desde que fique provado que ele agiu ou deixou de agir no sentido de desacreditar o sistema eleitoral e incentivar os ataques Ă s sedes dos TrĂŞs Poderes, em BrasĂlia.
“Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) nĂŁo foi exitoso apenas porque houve a resistĂŞncia de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso nĂŁo afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da RepĂşblica pode atender ao requisito tĂpico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração”, avaliam eles, referindo-se Ă reuniĂŁo recentemente divulgada em que Bolsonaro e seus ministros discutiram estratĂ©gias golpistas.
De acordo com os criminalistas, o Supremo Tribunal Federal está acertando na tipificação das condutas dos bolsonaristas que participaram do 8 de janeiro. Porém, opinam eles, a corte está errando ao considerar que os atos configuram concurso material de delitos, quando na verdade deveriam configurar concurso formal. Isso porque os golpistas praticaram apenas uma conduta: a de invadir as sedes dos Três Poderes com o fim de transformar o regime. Devido a esse entendimento do STF, as penas impostas aos arruaceiros têm sido exageradamente elevadas, analisam os advogados.
Um dos maiores penalistas brasileiros, Nilo Batista advoga há quase 60 anos. Ele defendeu presos polĂticos durante a ditadura militar, foi governador e secretário de Justiça e PolĂcia Civil do Rio de Janeiro, presidente da seccional fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Rafael Borges é sócio do escritório Nilo Batista & Advogados Associados, coordenador do curso de pós-graduação lato sensu da OAB-RJ-Uerj e diretor-secretário do Instituto Carioca de Criminologia.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Por que a Lei Rao, de 1935, pode ser considerada a “verdadeira matriz da nossa tradição legislativa autoritária”?
Rafael Borges — A Lei Rao Ă© apelidada de Lei Monstro. (O ex-ministro da Justiça) Vicente Rao foi quem a escreveu. Era uma lei que tinha inspiração no fascismo italiano. Foi a primeira vez que se estabeleceram, de forma clara, inequĂvoca, parâmetros de defesa daquilo que se convencionou denominar de segurança nacional. Na verdade, já existiam dispositivos referentes Ă segurança nacional em leis anteriores. A Lei Rao nĂŁo foi a primeira norma brasileira a tratar do assunto. Isso já vinha sendo tratado desde as Ordenações Filipinas, passando pelo CĂłdigo Criminal do ImpĂ©rio e, depois, permanecendo no CĂłdigo Penal da RepĂşblica, de outras formas. Mas a lei de 1935 Ă© a lei que estabelece a segurança nacional como um bem jurĂdico e cria normas bastante duras para quem cometesse delitos contra ela. A partir da Lei Rao, desenham-se todas as leis de segurança nacional do Brasil, como as da ditadura militar.
Nilo Batista — A Lei Rao foi uma legislação muito imperfeita, um modelo de imperfeição. E os legisladores nĂŁo se preocuparam com isso. Vicente Rao foi autor de uma lei completamente monstruosa. As ideias daquela lei torturaram e mataram muita gente.
ConJur — A Lei 136/1935 alterou a Lei Rao para, entre outras medidas, criar o crime de abuso de liberdade de imprensa. Hoje se discute o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020), que cria regras para combater as notĂcias falsas nas redes sociais. Alguns afirmam que esse projeto restringe indevidamente a liberdade de expressĂŁo. Como combater a desinformação sem criar regras autoritárias?
Nilo Batista — É uma grande preocupação. Estamos em uma zona limĂtrofe de ofender a liberdade de imprensa. NĂłs devĂamos recorrer Ă responsabilidade sucessiva, uma invenção brasileira, criada no CĂłdigo Criminal do ImpĂ©rio, que responsabilizava veĂculos jornalĂsticos ao mesmo tempo em que protegia a liberdade de imprensa. Pela regra geral da coautoria e da participação do Direito brasileiro, todo mundo que contribui para um crime responde por tal crime. Mas se fosse um crime de imprensa, seria absurdo pensar em responsabilizar o jornaleiro, o impressor do jornal, o motorista do caminhĂŁo, os colegas de redação do autor… A responsabilidade sucessiva abria uma exceção Ă regra geral e estabelecia que, em crimes de imprensa, sĂł respondia o autor. Se o autor fosse inacessĂvel, o redator-chefe do veĂculo passava a responder, porque deveria ter mantido o autor acessĂvel. Havia essa sequĂŞncia de sĂł responsabilizar um agente, em nome da liberdade de imprensa.
Pois bem, o Supremo disse que isso era inconstitucional (ao declarar a inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (Lei 5.250/67)) por razões que consistiam, essencialmente, em puxar o saco da imprensa. Seria um mecanismo interessante de se restabelecer. Se uma plataforma resolve noticiar, passa a ter responsabilidade sucessiva, caso não se consiga chegar ao autor. Se a plataforma veicula um conteúdo, ela tem de saber minimamente quem é o autor. Não pode se eximir da responsabilidade sob o argumento de que não produziu o conteúdo.
Rafael Borges — O projeto de lei aprovado no Senado (da Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito) previa o tipo penal das fake news. E o ex-presidente Jair Bolsonaro, por razões muito distintas das nossas, vetou. Mas a verdade Ă© que era um tipo penal muito mal feito. Era construĂdo na perspectiva de transformar o juiz no responsável por emitir a verdade estatal sobre um determinado assunto. Isso sempre nos assustou muito.
Nilo Batista — No Estado democrático de Direito, nĂŁo existe verdade oficial. NĂŁo pode existir. Onde houve verdade oficial, houve autoritarismo. Assim como sempre houve autoritarismo em locais com tribunais muito envolvidos na polĂtica. É sĂł olhar o sĂ©culo XX.
ConJur — Como a doutrina de segurança nacional influenciou as leis repressivas da ditadura militar de 1964?
Nilo Batista — Influenciou muito. Era um corpo teĂłrico que foi adotado pela legislação, nĂŁo sĂł pela Lei de Segurança Nacional. Era um mĂ©todo muito autoritário e completamente desvinculado de qualquer compromisso com o povo brasileiro. Era uma doutrina forjada em câmaras de tortura, em aventuras imperialistas, e que chegou ao Brasil e foi encampada pela ditadura.
Rafael Borges — (O jurista argentino Eugenio RaĂşl) Zaffaroni ironiza a expressĂŁo doutrina. NĂŁo dá para chamar isso de doutrina. Era muito mais um conjunto desorganizado de ideias do que exatamente um corpo teĂłrico criado sob tal perspectiva. Foi algo muito funcional para o imperialismo, especialmente o francĂŞs.
ConJur — Qual foi o impacto de atribuir Ă Justiça Militar, em 1967, a competĂŞncia para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional?
Nilo Batista — Primeiro quiseram alargar ainda mais a competĂŞncia da Justiça Militar, atribuindo-lhe tambĂ©m crimes contra a economia popular. AĂ viram que nĂŁo dava muito certo. Mas essa experiĂŞncia da ditadura revelou que, dentro das Forças Armadas, havia espĂritos democráticos. Em primeiro lugar, existia cortesia. O advogado nĂŁo era discriminado, como Ă© hoje. Era muito melhor trabalhar no Tribunal de Segurança Nacional do que trabalhar na vara de Sergio Moro (13ÂŞ Vara Federal de Curitiba), na vara de Marcelo Bretas (7ÂŞ Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro) ou em outras varas federais e estaduais. Havia pessoas interessadas em dar uma solução para o caso. E muitas vezes houve boas soluções. Claro que havia limites, que de vez em quando surgia um oficial fascistinha, mas nĂŁo era a regra. E no Superior Tribunal Militar houve compreensĂŁo com a juventude que se insurgiu contra a ditadura — nem sempre, Ă© claro.
Atribuir à Justiça Militar a competência para julgar militares e civis acusados de crimes contra a segurança nacional foi um movimento de endurecimento da ditadura, mas os advogados enfrentaram a situação. E viram que, ao contrário do que a ditadura pensou, a Justiça Militar não foi uma servil cumpridora de um programa condenatório que o Executivo lhe passava.
ConJur — Como o Decreto-Lei 898/1969 restringiu o direito de defesa?
Nilo Batista — O Decreto-Lei 898/1969 nĂŁo foi o problema. O problema foi o Decreto-Lei 314/1967, que previa a pena de morte — embora ela nĂŁo tenha chegado a ser executada.
Rafael Borges — O Decreto-Lei 314/1967 foi a norma que incorporou a doutrina de segurança nacional de forma definitiva Ă legislação brasileira. É o que toda a doutrina fala. Foi sob a Ă©gide desse decreto que as maiores atrocidades foram praticadas. O decreto tinha uma estrutura muito dura, muito pesada, tinha tipos penais muito abertos. Mas a ditadura cometeu as maiores atrocidades extrapolando os limites legais. Era o Direito Penal subterrâneo, aquilo que era feito nos porões.
ConJur — Por que definir o que Ă© “segurança do Estado”, como fazia o Decreto-Lei 898/1969, Ă© imprĂłprio?
Rafael Borges — Esses conceitos sĂŁo sedimentados em outros espaços, como na doutrina. A atividade de interpretação consiste em olhar para o conteĂşdo normativo, entender o conceito, ver de que forma o conceito está sedimentado e aplicá-lo ao caso concreto. O legislador nĂŁo Ă© dono dos conceitos. Ele nĂŁo pode, alĂ©m de definir a lei, definir os conceitos.
Nilo Batista — O problema Ă© que a segurança nacional era compreendida pela Ăłtica da doutrina de segurança nacional. E, na verdade, a segurança nacional nĂŁo passa do regime primário das leis na condição de liberdade. NĂŁo Ă© preciso perseguir os objetivos nacionais permanentes. Era uma visĂŁo autoritária de segurança nacional, de um paĂs amordaçado.
ConJur — A Lei 7.710/1983, outorgada ainda durante a ditadura, foi usada atĂ© há pouco tempo no paĂs. Como enxergam a aplicação dessa norma já sob a Constituição de 1988?
Nilo Batista — Era uma lei meio envergonhada, uma tentativa de colocar o chapĂ©u, os Ăłculos e o vestido da vovĂł no lobo mau. Era uma tentativa de atenuar as normas, mas sem mudar muito. NĂŁo havia sensibilidade polĂtica para mexer na lei quando chegou a redemocratização, e ela continuou em vigor.
Rafael Borges — NĂłs defendemos militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) acusados com base na Lei de Segurança Nacional. Mas, realmente, ficou algo meio anacrĂ´nico. A democratização aconteceu, veio a Constituição de 1988 e permaneceu esse entulho autoritário. Era uma lei muito caudatária da ditadura. Mas era uma lei bem escrita, bem diferente da atual. Era uma lei com conceitos claros, que tratava da questĂŁo do elemento subjetivo, da necessidade da motivação polĂtica dos atos, algo que nĂŁo está presente na lei nova. Mas, de fato, era uma lei autoritária, merece todas as crĂticas por isso. Na verdade, ela foi recepcionada pela Constituição de 1988, embora isso nunca tenha sido declarado.
A lei teve um uso muito marginal, para a criminalização de movimentos sociais. E Bolsonaro fez aumentar bastante o nĂşmero de inquĂ©ritos policiais instaurados para apurar crimes relacionados Ă lei, todos na linha de combater opositores polĂticos.
ConJur — A Lei 14.197/2021 Ă© democrática ou ainda carrega aspectos autoritários das normas anteriores de segurança nacional?
Nilo Batista — Toda lei de defesa do Estado tem um traço de conservadorismo, porque a ideia Ă© manter o que está presente. SĂł que, por exemplo, a nossa histĂłria dos Ăşltimos 200 anos Ă© de muitas transformações. E isso nĂŁo vai acabar, nĂŁo chegamos ao paraĂso cĂvico, jurĂdico, judiciário. EntĂŁo, Ă© uma lei de transição. Era o suficiente para o momento. Mas, em algum momento, vamos ter de revĂŞ-la.
Rafael Borges — Sem dĂşvidas, Ă© a melhor lei de segurança nacional que a gente já teve. PorĂ©m, ela poderia ter menos tipos penais abertos. Ela tem muitos conceitos que dependem de complementação. Por exemplo, os crimes relacionados Ă informação dependem da LGPD.
ConJur — A Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito está sendo aplicada nos julgamentos de bolsonaristas que promoveram os ataques em BrasĂlia em 8 de janeiro de 2023. Como avaliam a aplicação da norma pelo STF nesse caso?
Rafael Borges — Essa lei foi a ferramenta que viabilizou, na prática, a contenção ao golpe de 8 de janeiro. Isso Ă© um fato prático. Dito isso, nĂŁo houve concurso material nas condutas dos bolsonaristas, como o Supremo vem entendendo, e, sim, concurso formal.
Nilo Batista — A Ăşnica conduta dos bolsonaristas foi a de invadir as sedes dos TrĂŞs Poderes com o fim de transformar o regime. O concurso material pressupõe duas ou mais condutas.
ConJur — Sendo assim, os senhores consideram exageradas as penas que vĂŞm sendo aplicadas pelo Supremo no caso?
Rafael Borges — Sim. As tipificações estĂŁo corretas, mas aplicar pena de 17 anos, com base em concurso material, Ă© exagero.
Nilo Batista — As pessoas que estĂŁo sendo condenadas sĂŁo do baixo clero, uma militância desinformada. Se elas estĂŁo recebendo penas de 17 anos, quais serĂŁo as penas dos mandantes?
ConJur — Por que os crimes de abolição violenta do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado, previstos nos artigos 359-L e M da nova lei, sĂł abrangem a tentativa de praticar tais condutas?
Nilo Batista — Os tipos penais sĂł abrangem a tentativa porque, se houver um golpe e o Estado democrático de Direito for abolido, a lei nĂŁo valerá mais nada.
Rafael Borges — Salvo engano, sĂŁo os Ăşnicos tipos da legislação penal brasileira construĂdos com o verbo tentar no seu nĂşcleo principal. Todo crime doloso pode ser praticado de forma tentada, mas nĂŁo existem tipos especĂficos. Por isso, discutimos no livro se seria possĂvel a tentativa da tentativa e a desistĂŞncia voluntária. Mas chegamos Ă conclusĂŁo de que isso nĂŁo Ă© possĂvel, pois o mero inĂcio da execução basta para consumar os crimes.
ConJur — Bolsonaro pode responder pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e de golpe de Estado?
Nilo Batista — Vai depender da existĂŞncia de prova que o filie Ă quele acontecimento (os ataques de 8 de janeiro).
Rafael Borges — Em tese, Ă© evidente que ele pode responder por esses crimes. PorĂ©m, por mais que a lei tenha tipos abertos, ela nĂŁo autoriza a responsabilidade penal objetiva. A responsabilidade de Bolsonaro nĂŁo pode ser presumida a partir dos discursos grosseiros que ele fazia. É preciso encontrar, em uma ação ou omissĂŁo dele, esses resultados naturalĂsticos todos.
ConJur — Como os senhores avaliam a reuniĂŁo golpista de Bolsonaro e seus ministros, recentemente revelada? Ela e os atos para preparar um golpe de Estado configuram crime contra o Estado democrático de Direito?
Nilo Batista e Rafael Borges — NĂŁo atuamos no caso e essa circunstância nos impede de abordá-lo em sua concretude e especificidade. Mas, em tese e simplificadamente, uma conspiração pode ter se desenvolvido ao longo do tempo atravĂ©s de diversas condutas conspiratĂłrias clarĂssimas — que passam pelo descrĂ©dito do sistema eleitoral, pela promoção de manifestações e pela manutenção de estruturas golpistas, como acampamentos —, culminando em um grande evento de ruptura. Um grande evento de ruptura, com agentes de segurança e práticas de violĂŞncia e grave ameaça, pode ser a resultante do processo instigado por um conjunto de discursos e atos conspiratĂłrios.
NĂŁo se pode isolar uma Ăşnica reuniĂŁo supostamente conspiratĂłria. Se o grande evento de ruptura (os ataques de 8 de janeiro) nĂŁo foi exitoso apenas porque houve a resistĂŞncia de oficiais leais aos votos que fazem quando recebem as armas da nação, isso nĂŁo afeta a consumação delitiva. A ocupação violenta de sedes de poderes da RepĂşblica pode atender ao requisito tĂpico, se isso está em linha de continuidade com a conspiração. NĂŁo há mesmo como procurar violĂŞncia e grave ameaça na reuniĂŁo dos conspiradores. Estamos diante de crimes complexos, em regra praticados por várias pessoas e mediante diversas condutas, concomitantes e sucessivas. Os fatos devem ser analisados dentro do contexto, sem pinçamentos indevidos. O empreendimento golpista pode se revelar na relação causal entre práticas conspiratĂłrias e os atos de violĂŞncia e grave ameaça.
ConJur — Nilo Batista, em 1979, o senhor entendeu que a Lei da Anistia nĂŁo atingia os crimes praticados por torturadores. No entanto, quando o STF julgou a sua constitucionalidade, em 2010, o senhor foi contra a sua anulação e a punição de militares. Agora há um movimento para anistiar os que praticaram os atentados de 8 de janeiro. Como enxerga uma eventual anistia a essas pessoas?
Nilo Batista — Eu nĂŁo tenho nada contra a anistia em geral. Em 1979, eu entendi que a Lei da Anistia nĂŁo se aplicava aos crimes praticados por torturadores, mas mexer nisso 30 anos depois seria quase uma violação oblĂqua do princĂpio da legalidade. E iria na contramĂŁo das mudanças polĂticas, dos acordos que permitiram a redemocratização.
Se eu fosse conselheiro de Lula, eu teria dito a ele para incluir esse pessoal (do 8 de janeiro) no induto de Natal. Eu faria um gesto na direção deles, desse pessoal do baixo clero. Seria um gesto de uniĂŁo, de generosidade. Aliás, avisaria a todos os parlamentares que, se eles extinguirem a “saidinha” (como foi recentemente aprovado pelo Senado), irĂŁo transformar as penas dessas pessoas em regime fechado para o resto da vida. Eles nĂŁo vĂŁo ter regime aberto, nĂŁo vĂŁo visitar a mĂŁe, a mulher, os filhos.
ConJur — Os senhores mencionam uma dificuldade dos ordenamentos jurĂdicos, especialmente os de paĂses perifĂ©ricos, de lidar com o “colonialismo tardio”, segundo conceito de Zaffaroni. Quais os impactos do colonialismo tardio na criminalidade e na segurança do Brasil?
Rafael Borges — O colonialismo demanda a ampliação das ferramentas de controle social, das ferramentas que estabelecem o controle sobre os corpos vulneráveis, os corpos matáveis, os corpos que nĂŁo integram as dinâmicas de mercado, de consumo. PaĂses do capitalismo perifĂ©rico, que sofreram o colonialismo tardio, estĂŁo sempre usando o sistema de Justiça Criminal como instrumento de ampliação do controle. O capitalismo nĂŁo deu certo em lugar nenhum, mas aqui deu um pouco menos certo do que nos paĂses do norte, de primeiro mundo. E aqui o sistema penal Ă© usado, de maneira muito clara, para manter esses corpos de alguma forma controlados, de alguma forma censurados, para trazer um pouco a falsa sensação de segurança, de ordem, de tranquilidade. E a segurança nacional está nesse debate.
Nilo Batista —AlĂ©m do nĂvel polĂtico, tem o colonialismo no nĂvel teĂłrico. Quando eu era jovem, tudo de teoria que vinha da Alemanha era glorificado por aqui. Lá eles tĂŞm uma sociedade de classe mĂ©dia. Aqui nĂŁo, o sangue está escorrendo no meio da rua. O pensamento deles está condicionado por uma sociedade de classe mĂ©dia, com as coisas muito arrumadas, um Estado eficiente. Aqui temos outras questões, as nossas urgĂŞncias, o nosso sangue, a nossa misĂ©ria. EntĂŁo, esse colonialismo Ă© tambĂ©m achar que tudo o que Ă© pensado no HemisfĂ©rio Norte Ă© bom para nĂłs. NĂŁo Ă©. Ă€s vezes, precisamos exatamente do contrário.
Rafael Borges — E a doutrina de segurança nacional foi importada acriticamente, sem se observar as diferenças grosseiras de contexto, de realidade, que nos separam dos paĂses onde ela foi gestada — notadamente, dos Estados Unidos e da França. Foi isso o que quisemos dizer ao mencionar a dificuldade dos ordenamentos jurĂdicos de paĂses perifĂ©ricos de lidar com o colonialismo tardio.