Coleta de lixo, saúde e folha salarial: veja os gargalos das transições nas prefeituras do Ceará

Prefeitos eleitos pela oposição têm enfrentado dificuldade para obter informações sobre garantia de serviços essenciais


Por Alessandra Castroalessandra.castro@svm.com.br

Abastecimento da saúde, gestão do lixo e transporte escolar e coletivo são alguns dos problemas enfrentados durante transições em cidades do Ceará. Foto: Ismael Soares/Fabiane de Paula e Cid Barbosa/Arquivo Diário do Nordeste

A menos de um mês para a posse dos novos gestores municipais, equipes de transição de grupos de oposição enfrentam dificuldades para obter informações sobre as administrações públicas cearenses. Os principais gargalos são no repasse de dados para evitar a descontinuidade de serviços essenciais a partir de 1º de janeiro de 2025, como assistência à saúdecoleta de lixo e transporte — seja coletivo, escolar ou de cidadãos que recebem tratamentos em outras cidades. 

Em 93 dos 184 municípios, haverá alternância de gestores a partir do ano que vem. Em 40 destes, os prefeitos que irão assumir são de grupos de oposição ao atual mandatário. Na maioria desses locais, há atrasos na disponibilização completa de documentos sobre verbas em caixa, dívidas, folha de pagamento de pessoal, incluindo efetivos e terceirizados, e de contratos de abastecimentos de insumos e medicamentos de unidades de saúde, da coleta de lixo e do transporte de passageiros. As informações constam nas atas de reuniões das equipes de transição de governo, publicadas no Portal de Transição Responsável do Tribunal de Contas do Ceará (TCE). 

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Em todas essas cidades, o TCE e o Ministério Público do Ceará (MPCE) têm acompanhado a transição de perto, com intuito de prevenir desmontes nas administrações públicas ou descontinuidade de serviços. Todavia, algumas delas sobressaem na atenção dos órgãos devido às crises na prestação de serviços essenciais e denúncias em investigação. Dentre os exemplos citados, estão Fortaleza, Caucaia e Penaforte. 

Confira abaixo a situação em cada uma delas.

Fortaleza 

Na Capital, a crise de desabastecimento de insumos hospitalares, medicamentos e profissionais da saúde do Instituto Dr. José Frota (IJF), explodiu em meio aos trabalhos de transição Fortaleza — iniciados oficialmente em 12 de novembro entre as equipes do atual prefeito, José Sarto (PDT), e do prefeito eleito, Evandro Leitão (PT). 

Até o momento, pelo menos duas ações civis pública já foram ajuizadas pelo MPCE contra a Prefeitura com foco no hospital. Em uma delas, o Ministério Público solicita a convocação de, no mínimo, 88 candidatos aprovados no último concurso do IJF, realizado em 2020 e que vence no dia 28 de dezembro. Além disso, o órgão também aponta uma carência de 1.147 profissionais.  

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Na outra, solicitou na Justiça que o Paço Municipal garantisse medicamentos e insumos necessários para a normalização do funcionamento do hospital. Uma força-tarefa foi montada por Sarto para evitar colapso do atendimento na unidade e entregas de documentos sobre a situação financeiro do hospital foram agendados para o dia 13 de dezembro.  

A crise no IJF gerou tensionamento entre as equipes de Sarto e Evandro no fim de novembro. No encontro de trabalho do último dia 25, os representantes do petista reclamaram da falta de esclarecimentos sobre a situação do local. 

IJF
Hospital registrou pacientes dormindo em papelões no chão e "crise de lençol". Foto: Arquivo pessoal cedido ao Diário do Nordeste

Antes disso, no entanto, o grupo de Leitão já reiterava pedidos de dados na área da Saúde que podiam colocar em risco a continuidade de serviços essenciais, conforme constam nas atas das reuniões publicadas no Portal de Transição do TCE. Dentre eles, estão: 

  • Documentos que comprovem, de forma integral, os resultados de auditorias internas realizadas na Secretaria Municipal de Saúde (SMS);  
  • Situação contratual de serviços de distribuição de insumos hospitalares, bem como contingente disponível e repasses atrasados (se houver); 
  • Situação da licitação para contratação de ambulâncias do tipo A e B, uma vez que o contrato consta como "vencido" e está em fase de "nova licitação em andamento"; 
  • Contingente e escalas dos profissionais da saúde; 
  • Contingente (materiais, insumos e profissionais) para continuidade de ações na Saúde de Fortaleza de 99 contratos que vencem em 2024 e estão classificados como "improrrogáveis";
  • Demonstrativo financeiro completo da Pasta (com orçamento, recursos em caixa e déficit). 

No Portal, constam apenas atas dos encontros realizados até 19 de novembro. Todavia, no dia 3 deste mês, a vice-prefeita eleita, Gabriella Aguiar (PSD), disse que os dados que vinham sendo repassados pelo secretariado de Sarto não eram exatamente o que eles precisavam e dispunham mais sobre "as conquistas que eles avaliam das suas gestões". Ela é a coordenadora da equipe de transição da nova gestão. 

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Após ser procurada, a assessoria da Prefeitura de Fortaleza informou que "todas as respostas serão fornecidas para a equipe do prefeito eleito nos prazos estabelecidos".  

Sobre as ações do MPCE, foi informado que "a força-tarefa está atuando para garantir o abastecimento" do IJF e que "não há nenhuma decisão judicial obrigando a convocar os aprovados", reforçando que dezenas já tinham sido contemplados. 

Caucaia 

Em Caucaia, a transmissão de informações para a passagem de bastão do comando do município também tem sido conturbada. Antes mesmo do início da transição, o atual prefeito, Vitor Valim (PSB), anunciou que a administração pública detém uma dívida de R$ 200 milhões, que será herdada pela próxima gestão. A declaração foi feita logo após o segundo turno na Cidade, sob alegação de que o valor seria resultado de débitos de administrações anteriores. 

Logo na primeira reunião oficial entre as equipes de Valim e do prefeito eleito, Naumi Amorim (PSD), realizada no dia 13 de novembro, foram solicitados relatórios da dívida da cidade, patrimônio, quantitativo de recursos humanos, contratos de serviços e obras que irão próximos do vencimento e operações de créditos, entre outras. 

No segundo encontro, débitos sobre o pagamento de contribuições patronais previdenciárias dos servidores que estão pendentes foram questionados pelos representantes do prefeito eleito. No entanto, a resposta à indagação não agradou a futura administração. Na ata, realizado no dia 26 de novembro, o secretário Municipal de Gestão e Governo, Guthemberg Holanda, teria dito que "atual gestão está enviando esforços para quitação das pendências até o final do ano corrente". 

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Na terceira reunião, ocorrida na última quarta-feira (4), foi solicitado o pagamento do Programação Pactuada Integrada (PPI) da Assistência Farmacêutica na Atenção Básica, para que o município não fique sem poder continuar participando do programa, e cronograma de quitação dos débitos dos meses em atrasos de contratos com Cooperativas de Saúde para evitar paralisação de serviços essenciais na área no município por falta de profissionais.

Sobre o primeiro item, o representante de Valim informou que a gestão faria o pagamento até o dia 12 deste mês. Já em relação ao segundo ponto, a resposta foi semelhante à dada no segundo encontro sobre as contribuições patronais. Ambas constam na ata.

Coordenador da equipe de transição do prefeito eleito, Carlos Eduardo apontou que a atual gestão "estava protelando a entregada dos documentos", que isso está claro nas atas, uma vez que detalhes de despesas solicitados posteriormente deveriam constar nos balancetes iniciais. Além disso, ele acrescenta que os dados descobertos apontam "um rombo muito maior" do que os R$ 200 milhões anunciados. 

"A equipe do prefeito atual estava protelando a entrega dos documentos, não estavam entregando nem parcial ou integralmente e se esquivando de enviar os principais documentos que a gente pedia", afirmou. 

Por isso, segundo ele, Naumi Amorim requereu acompanhamento da transição no município, apontando que a dívida da Prefeitura é maior do que o informado. Somente no Instituto de Previdência do Município, os atrasos nos pagamentos seriam superiores a R$ 39,5 milhões. Além disso, a a empresa responsável pelo transporte coletivo na cidade está ameaçando suspender o programa "Bora de Graça", que oferta passagens gratuitas no município para a população, por atrasos no pagamento que somam mais de R$ 14 milhões.  

Bora de Graça
Em Caucaia, empresa que opera transporte coletivo na cidade ameaça suspender o programa "Bora de Graça", responsável pela oferta de passagens gratuitas no município, por atrasos de verbas da Prefeitura. Foto: Divulgação

Ambas as denúncias foram feitas ao MPCE nessa quarta (4). Sobre o tema, o órgão disse que vai realizar reuniões com as equipes de transição na próxima semana "para averiguar os fatos". Com relação ao Bora de Graça, informou que instaurou procedimento para apurar a situação e se reunir com representantes da prefeitura e da empresa para mediar soluções e apurar responsabilidades. 

Por meio de nota, a Prefeitura de Caucaia informou que a administração de Vitor Valim encontrou, em 2022, "um cenário de dívidas de pelo menos R$ 480 milhões fruto de um financiamento realizado pelo então prefeito e agora eleito, Naumi Amorim". Neste ano, R$ 60 milhões em dívidas "deixadas por outros gestores" teriam sido pagas. 

A nota acrescenta ainda que não realizou empréstimos ou financiamento nesses últimos quatro anos e que as obras e ações realizadas na cidade foram possíveis com recursos próprios e de convênios com o Governo Federal e Estadual. 

Quanto à transição, a Prefeitura reforçou que todos os documentos e informações solicitadas pela equipe de transição do prefeito eleito "estão sendo devidamente repassadas e na forma por estes requeridas". Os relatórios financeiros (parciais e completos), quantitativos de recursos humanos, contratos a vencer, entre outras informações também foram enviadas por e-mail. 

Penaforte

Em Penaforte, na região do Cariri, apenas uma reunião de transição foi realizada formalmente até o momento, no dia 12 de novembro, conforme consta no Portal do TCE. No encontro, o prefeito eleito, Luís de Celestina (PSB), questionou supostas ausências de psiquiatras, veículos para transporte de moradores que fazem hemodiálise e quimioterapia em outras cidades, falta de médicos nos plantões de unidades de saúde rede municipal. 

Além disso, a equipe também cobrou a atualização do portal da transparência de Penaforte, "conforme acordado em reunião com o Ministério Público em Brejo Santo" anteriormente e apontou ônibus escolar parado no distrito de Santo André, zona rural, devido a defeito. Na própria ata da reunião, a equipe da gestão atual informou que há psiquiatra "atendendo normalmente" e que vai comunicar a continuidade dos serviços e "resolução de todos os problemas" apontados pela equipe. 

Penaforte
Em Penaforte, apenas uma reunião foi realizada oficialmente entre as equipes de transição, conforme consta no TCE. Foto: Arquivo Diário do Nordeste

Também ficou estabelecido que as demais informações solicitadas seriam atendidas "em calendário a ser definido entre as equipes". Porém, não houve um novo encontro até o momento, conforme aponta o prefeito eleito. Segundo ele, a nova gestão ainda não obteve informações "cruciais", como situação contábil do município — fluxo de caixa, dívida, restos a pagar e receita —, nem de folha de pessoal, considerando temporários e efetivos, entre outras. 

Ainda de acordo com Luís de Celestina, alguns serviços chegaram a ser paralisados no município, como a coleta de lixo, por atrasos no pagamento. Em reunião mediada pelo Ministério Público na cidade, a atual gestão informou que o contrato com a concessionária de limpeza urbana já havia sido normalizado e tem vigência até março de 2025. Logo, não estaria passível de descontinuidade a partir de janeiro. 

Na ocasião, houve um acordo para atualizar o portal da transparência do município para que contratos de serviços essenciais, inclusive da coleta, pudessem ser consultados. 

"O contrato do lixo vai até março do ano que vem, segundo eles disseram, mas a empresa parou uns dias por atraso. No dia da reunião com a promotoria, ele disse que estava tudo em dias, mas a gente até hoje não teve acesso aos dados e nem está atualizado no portal da transparência", informou. 

A reportagem tentou contato com o atual prefeito de Penaforte, Dr. Rafael Angelo (PT), mas não obteve retorno. Em caso de resposta, haverá atualização. 

Inspeções 

Além destes municípios, o TCE já realizou inspeções presenciais para fiscalização da transição em Pacajus, Pacatuba, São Luís do Curu, Paracuru, Cascavel, Canindé, Itapiúna e está com equipes em Baixio e Acopiara. As cidades foram definidas com base em uma matriz de risco, que leva em consideração afastamentos de prefeitos eleitos desde 2020, denúncias e solicitações de promotores locais.  

A visita técnica, porém, não significa identificação de irregularidades que possam caracterizar crimes de responsabilidade ou contra a administração pública dos atuais gestores, apenas verificação in loco por impossibilidade de realizar procedimentos de forma virtual.  

"Nós vamos verificar situações que possam caracterizar desmontes, paralisia de serviços de saúde, problemas financeiros, mas cada municípios tem sua particularidade. Às vezes, o problema é financeiro, mas não de corrupção ou desmonte. Por isso, a gente faz um relatório, apontando os achados e apresenta aos gestores, para que eles se pronunciem. Mas a gente ainda está elaborando esses relatórios, nem toda cidade tem irregularidade" 
Cristiano Góes
Diretor de de Fiscalização de Atos de Gestão I do TCE

Apuração específica 

Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (CAODPP) do MPCE, Daniel Lira explica que o órgão tenta primeiro dialogar e intermediar soluções com as equipes de transição, tendo em vista que, em alguns casos, há uma dificuldade em comunicar dados técnicos. Por isso, é necessária uma verificação de cada caso antes de aberturas de processos. 

"Nos lugares onde é identificado alguma possível irregularidade ou ilegalidade na prestação de serviço público, o MPCE tem instaurado procedimentos de investigação, e, em alguns casos, pede a abertura de ação civil pública. Mas o objetivo é estabelecer um diálogo transparente sobre a máquina pública e evitar colapso de serviços prestados à população", explica. 

"Nós não recomendamos que a transição se transforme em governo provisório, porque não é isso, o governo continua sendo do gestor atual até 31 de dezembro, mas é preciso que ele passe qual a situação do município" 
Daniel Lira
Coordenador do CAODPP do MPCE

Diminuição de desmontes

O diretor de Fiscalização de Atos de Gestão I do TCE, Cristiano Góes, aponta, ainda, que o número de situações que caracterizam desmontes tem diminuído ao longo dos últimos pleitos municipais. Por isso, o TCE e o MPCE têm voltado forças, em 2024, para prevenção. 

"Em 2020, nós fizemos 19 inspeções e todas foram encontradas irregularidades. Algumas mais graves, outras menos, mas sem afastamento de prefeito em exercício. Em 2016, nós tivemos situações muito problemáticas que levaram ao afastamento de prefeitos. Houve seis afastamentos de prefeitos ainda durante o exercício do mandato por situações graves de atraso de salários, não repasse de consignados, paralisação de serviços de saúde. Ao todo, foram 14 ações de improbidade abertas pelo Ministério Público a partir dos nossos relatórios", relembra Cristiano Góes. 

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Já o coordenador de Defesa do Patrimônio Público do MPCE acrescenta que os gestores que cometerem desmontes nos municípios estão sujeitos à aplicação sanções cíveis, criminais e administrativas, a depender da conduta. 

"Pode ter suas contas julgadas rejeitadas, a depender daquilo que foi apresentado na prestação de contas pelo TCE e ficar inelegível. Se for identificado algum ato de improbidade administrativa, o MPCE vai investigar para responsabilizar o gestor de acordo com a LRF, que também pode ter responsabilização criminal. Nos casos mais graves, a exemplos de crimes de corrupção, pode levar à prisão", finaliza Daniel Lira. 

Diário do Nordeste

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