Iniciativas que floresceram nos últimos anos graças à democratização da mídia promovida pela internet correm o risco de desaparecer
Por Leonardo Attuch, jornalista e editor-responsável pelo 247
Ministro do STF Dias Toffoli (Foto: Nelson Jr./SCO/STF) |
O julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet avançou ontem, no Supremo Tribunal Federal, com uma má notícia. O relator do caso, ministro Dias Toffoli, votou pela inconstitucionalidade deste dispositivo, que é o pilar central da liberdade de expressão na internet. Fruto de uma ampla luta dos movimentos pela democratização da comunicação, o artigo 19 criou as condições para que milhões de pessoas pudessem se expressar livremente nas redes, assim como para o surgimento de novas iniciativas de jornalismo na área digital. Ou seja: ele foi o grande vetor da democratização da mídia no Brasil.
O artigo 19 determina que as plataformas digitais, como o Youtube, o X ou a Meta, só são responsáveis judicialmente pelo conteúdo que circula em suas redes se descumprirem ordem judicial. É assim que funciona em praticamente todo o mundo e, ao contrário da desinformação que vem sendo promovida neste debate, o artigo 19 não transforma a internet em “terra sem lei". No Brasil, por exemplo, existem milhares de canais no Youtube que são juridicamente responsáveis pelo conteúdo que veiculam. Tanto é assim que respondem por centenas de ações na Justiça. E há casos em que conteúdos são removidos por determinação judicial, assim como há outros em que conteúdos anteriormente removidos voltam a ser veiculados, quando decisões judiciais são revistas – o que demonstra que o debate público é repleto de nuances e interpretações diversas no próprio Judiciário.
Se as redes sociais se tornarem diretamente responsáveis por todo o conteúdo que circula por essa grande estrada digital, isso significa que elas deixarão de ser plataformas e passarão a ser empresas de jornalismo. A consequência prática é que não haverá mais criadores independentes de conteúdo, como é o caso, por exemplo, de milhares de canais de jornalismo, que respondem juridicamente por todo o seu conteúdo. Sem o artigo 19, para efeitos legais, canais desse tipo passariam a ser uma espécie de seção ou departamento interno de uma big tech, que responderia juridicamente pelo que fosse dito por seus jornalistas. Neste ambiente de insegurança, tais plataformas poderiam simplesmente suprimir de sua estrada a circulação de conteúdos jornalísticos, que, naturalmente, abordam os conflitos da sociedade.
Em seu voto, o relator propôs uma modulação, que, em tese, protegeria o jornalismo digital. “Toffoli afirmou que, caso seu voto prevaleça, a responsabilização das plataformas por conteúdos de terceiros deverá se basear no artigo 21 do Marco Civil, que prevê a retirada do conteúdo após simples notificação. Em relação aos blogs, Toffoli defendeu que eles sejam submetidos à Lei 13.188/2015, que trata do direito de resposta aplicado às empresas jornalísticas, e não ao Marco Civil da Internet", aponta nota divulgada pelo STF.
Entretanto, o voto agrava a situação. Primeiro, porque blogs ou sites de notícias nunca dependeram de big techs. Precisam apenas de um servidor, dentro ou fora do Brasil, para hospedar seu conteúdo. Segundo, porque o risco real envolve canais de jornalismo que existem dentro de plataformas digitais, como o Youtube. Estes canais já estão sujeitos à lei citada mencionada por Toffoli. O voto do ministro só eliminaria os riscos que pairam sobre o jornalismo digital se garantisse de forma expressa que: (1) as plataformas digitais não são responsáveis juridicamente pelo que é dito pelos criadores de conteúdo da área jornalística e (2) as plataformas digitais não podem tomar a decisão unilateral de eliminar canais jornalísticos, uma vez que a liberdade de expressão é cláusula pétrea da constituição brasileira. Na prática, seria o equivalente a dizer que o artigo 19 do Marco Civil da Internet segue valendo para a atividade jornalística.
Um movimento importante nesta direção foi feito pela Advocacia-Geral da União, que defendeu uma proteção especial para a atividade jornalística. "Nessa perspectiva, à luz da consagrada jurisprudência dessa Suprema Corte no tema, a União entende que referidas atividades devem, de ordinário, permanecer albergadas sob uma proteção especial, de modo a somente ensejar a responsabilidade civil dos provedores de aplicação após ordem judicial específica", apontou a AGU. Ou seja: neste caso, o Artigo 19 seguiria valendo.
A grande dificuldade, neste caso, seria definir o que pode ser classificado ou não como atividade jornalística, num ambiente como o brasileiro em que nem há mais a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão. Um caminho possível seria a certificação da atividade por meio de entidades de classe ou associações devidamente reconhecidas, assim como a obrigatoriedade de que as empresas jornalísticas apontassem um editor-responsável, que seria juridicamente responsável por todo e qualquer conteúdo veiculado. Desta forma, as plataformas continuariam isentas de responsabilidade legal e também não poderiam promover nenhum tipo de censura prévia.
Desde sempre, a estrutura da mídia no Brasil foi concentrada e oligárquica. A “democratização da mídia” prometida por governos progressistas nunca saiu do papel e os avanços que ocorreram nos últimos anos foram provocados pelo surgimento da internet, que eliminou barreiras de entrada para novos atores. Ou seja, com as redes sociais, o Brasil passou a ter mais vozes no debate público e, portanto, mais democracia. Eventuais excessos podem ser contidos pela regulação do artigo 19, e não por sua supressão – o que só ampliaria a insegurança jurídica tanto para as plataformas digitais como para as empresas de jornalismo digital que floresceram nos últimos anos. Jogar a criança fora com a água do banho é que algo que só interessa aos velhos monopólios da era analógica.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor (Leonardo Attuch), e não reflete a opinião do Site.